Liguei na segunda-feira para Reginaldo Nasser, professor livre-docente de relações internacionais da PUC-SP, a quem sempre recorro em casos de conflitos internacionais, tema no qual é especialista. Nasser acompanha atentamente a imprensa e frequentemente aponta erros e distorções na mídia ocidental, principalmente quando um dos envolvidos é aliado dos Estados Unidos. Portanto, uma ótima fonte para quem estava com a cabeça cheia de dúvidas depois de ficar grudada na cobertura do fim de semana.
A primeira delas: o ataque surpreendeu também por que a questão palestina, que se configura “em um apartheid imposto por Israel”, na definição da Anistia Internacional, foi esquecida pela mídia?
O professor confirmou.“Só aparece nos jornais quando entra o Hamas”, ironizou, para em seguida chamar a atenção para uma publicação do Haaretz, o maior jornal israelense, naquela mesma segunda-feira. Sob o intertítulo “Hamas como parceiro” o jornal revelou que, em uma reunião fechada de seu partido de extrema-direita, o Likud, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu afirmou: “qualquer pessoa que queira impedir o estabelecimento de um estado palestino tem de apoiar o fortalecimento do Hamas e a transferência de dinheiro para o Hamas. Isso faz parte da nossa estratégia”.
“Eu já sabia, mas ver essa declaração de Netanyahu entre aspas, publicada no principal jornal de Israel, é chocante”, disse Nasser. Nenhum órgão brasileiro de imprensa, com exceção do Intercept, repercutiu a bombástica revelação.
Por outro lado, o professor contou que já havia recebido pedidos de dois grandes veículos para que falasse do Hamas. “Não falo, só falo se for para falar também de Gaza, uma área do tamanho de Parelheiros (bairro de São Paulo) completamente isolada do mundo, com 2 milhões de pessoas vivendo de forma desumana, cercadas e controladas por Israel. O terrorismo desvia a atenção da questão palestina”, explicou.
“A Autoridade Palestina está cada vez mais desgastada, humilhada, desacreditada”, continua o professor. “O Hamas é sim, muito criticado na Palestina, por exemplo, entre os palestinos que conheço por aqui, nunca ouvi alguém elogiar o Hamas. Mas quando tem um conflito, é um território que não tem força armada. A Autoridade Palestina é polícia, uma polícia que bate nos palestinos – há pouco tempo houve uma revolta lá, bateram, prenderam e mataram. Então em momentos de pico de crise, o Hamas aparece como defensor – e claro que ele não é. No cotidiano é mal avaliado, repressor, a situação em Gaza é péssima, mas a forma como Gaza está cercada, isolada, facilita para o Hamas”, diz o professor.
Não há nada mais conveniente para a extrema-direita israelense, que pretende aniquilar os palestinos, como deixam claro as recentes declarações de Netanyahu, do que apresentar para o mundo a questão palestina sob a face do terror. Internamente, os atos bárbaros do Hamas no final de semana também têm uma função interna importante em Israel, já que atiçam o medo e o preconceito diante dos palestinos, “justificando” a crueldade da resposta.
Um sentimento cultivado desde a infância, no próprio sistema de ensino público de Israel, independentemente de quem está no governo, como comprovou a pesquisadora Nurit Peled-Elhanan, da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Em entrevista à repórter Júlia Dolce, Nurit, que analisou os livros didáticos utilizados pelas escolas israelenses, disse que o sistema educacional do país tem como objetivo educar as crianças e adolescentes para serem soldados e temerem palestinos.
“Cidadãos palestinos não são mencionados como parte da sociedade israelense, mas sim como o inimigo interno. É a lógica de eliminação e não aculturação, porque eles não são candidatos para integração na sociedade israelense. Há um determinismo sobre eles, é considerado que eles têm um instinto assassino inato, no sangue. O que eles fizeram agora não é lido através de nenhuma razão com exceção de que isso é o que eles são. E assim, os israelenses se livram de qualquer análise do que aconteceu, quando dizem ‘está no sangue’”, disse a educadora.
Enquanto os israelenses não aprenderem a olhar os palestinos como seres humanos iguais a eles, o que tornaria intolerável manter o cerco à Gaza e a condição miserável, análoga à escravidão, imposta a 5 milhões de pessoas, Israel não pode se considerar uma democracia, apesar da propaganda internacional. Sem direitos iguais, incluindo a participação política dos palestinos nos destinos do que se tornou, à força, um território compartilhado, não há nem vislumbre de solução.
Até por que, como explicou Nasser, a corrosão do território palestino pela expansão ilegal israelense e o fracasso dos acordos de paz conduzidos pelas grandes potências tornaram inviável a solução – almejada pelos palestinos e por humanistas de todo o mundo – de dois Estados e dois povos.
“Hoje é impossível a solução de dois Estados. Pessoas do mainstream americano, de diferentes posições políticas, escreveram um artigo na Foreign Affairs, dizendo que um Estado e dois povos é mais real. Um Estado democrático e dois povos. Mas é claro que isso exigiria uma grande transformação de Israel e também uma outra liderança palestina. É difícil, sofrido, mas parece ser a única solução viável”.
Para os que querem se aprofundar no assunto, segue o link do artigo citado pelo professor. Está na hora de pensar além do ódio.
Matéria publicada originalmente no link abaixo do A Pública
https://apublica.org/2023/10/o-hamas-como-parceiro/
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