Diário de uma precarizada

Por Ana Cláudia Araújo

O “Diário de Uma Precarizada” é uma iniciativa do Esquerda Diário e do grupo de mulheres Pão e Rosas, reproduzindo uma série de páginas de diários de mulheres precarizadas dos nossos tempos, com relatos de suas reflexões, suas histórias e cotidianos vivendo a combinação da opressão e exploração. É fundamental olhar a realidade do mundo pelos olhos das mulheres, que são metade da classe trabalhadora hoje, e no Brasil majoritariamente negras, que vivem em duras condições de vida, trabalhadoras precarizadas, terceirizadas, muitas delas moradoras de favelas e periferias. Esse diário busca dar voz a essas mulheres e contribuir para despertar, através de uma perspectiva revolucionária, para que a força cotidiana dessas mulheres se transforme em organização e luta, e estejam na linha de frente nos combates contra a opressão e exploração capitalista, sendo protagonistas da transformação do mundo com a nossa classe.

“Tenho 50 anos e a maioria deles tive como profissão o trabalho doméstico”

Relutei muito em escrever este relato. Talvez por querer manter adormecidas dentro de mim tantas questões que  hoje entendo ser necessário expressá-las. Colocar pra fora. Sou mulher, preta, moradora de comunidade, mãe, avó, esposa, diarista. Costumo dizer que já senti na pele várias expressões da questão social. Tenho 50 anos e a maioria deles tive como profissão o trabalho doméstico. Comecei a trabalhar com 13 anos. Uma menina dentro da casa de pessoas estranhas. Fui assediada, maltratada, humilhada, me lembro de uma vez ser trancada dentro do apartamento pela patroa. A última a comer e, na maioria das vezes, a sobra do dia anterior. O pão do café era sempre o adormecido. Não consigo lembrar disso tudo sem chorar. Choro. Me entristeço. Choro por saber que não sou a única vítima deste sistema maldito. Em saber que muitas como eu passam por isso pra poder levar o sustento pra suas famílias. Quando fui trabalhar na ‘casa dos outros’ pela primeira vez o fiz por não suportar ver os meus irmãos passando fome. Assumi uma responsabilidade que na verdade não me cabia. Mas não tinha como ser diferente. E acredito ser este o motivo que faz com que muitas mulheres, assim como eu, continuem perpetuando esse modelo escravista de trabalho.

Me recordo agora de um dia em que a filha da patroa deu por falta de uma blusa, fez um escândalo, disse que ia chamar a polícia, que queria a blusa dela de volta. Nessa ocasião éramos três trabalhando em uma mesma casa. A patroa nos deu um ultimato, disse que a blusa teria que aparecer ou senão seria descontado do nosso salário. Diferentemente das outras, me enchi de coragem e disse que não iria pagar por algo que não fiz. Se quisesse podia chamar a polícia. Dias depois a blusa apareceu em uma bolsa junto com outras roupas que ela tinha levado pra uma viagem. Em  outra ocasião, essa que nos acusou de roubo, flagrei revirando a bolsa da mãe, e pensei: mais uma que vai cair nas nossas costas. Tudo era culpa da criadagem. Até o vaso entupido. Entre idas e vindas, trabalhei quase 30 anos com essas pessoas.

Não pense que nunca tentei trabalhar em outra coisa, uma vez fui encaminhada por um posto de emprego a uma vaga num shopping chique da zona sul. Tinha 19 anos. Já era mãe. A vaga era de vendedora. Até hoje me pergunto porque me direcionaram para aquela vaga. Preta, pobre, favelada, com filho, sem estudo. Lembro do olhar da pessoa encarregada de fazer a entrevista e de todos as outras que estavam ali pela vaga. Não sei se eram pobres, aonde moravam, mas sei que todas eram brancas, cabelos lisos longos. Pense num ET? Foi exatamente assim que me senti.

Sem querer me estender muito, vou falar sobre o que me acontece agora. Trabalho
como diarista, sou graduanda em Serviço Social na UERJ e passei por muita coisa até conseguir ter uma certa autonomia pra poder optar para quem vou trabalhar. Conto moedas, mas não deixo mais ninguém me humilhar e acredito que o fato de ser estudante, na UERJ, me valoriza. Por isso insisto tanto que a educação é base de tudo. Ninguém manipula a pessoa que tem pensamento crítico, opinião, que conhece a sua história. Não sou dona da verdade, mas sou dona da minha verdade. Saio de casa cedo, pego ônibus lotado, ar condicionado quebrado, aglomerado e penso: querem mesmo nos matar. E estamos morrendo mesmo. Muitos de nós que não tem o privilégio de fazer isolamento social e mesmo que tivesse não teria a compreensão da gravidade da situação para fazê-lo. E é por isso que nos querem ignorantes. Massa de manobra. Manipuláveis! Pra terminar preciso colocar aqui uma frase que ouvi outro dia e carrego comigo: “combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”.

 

Ana Cláudia Araújo é aluna do 5º período de Serviço Social na UERJ. O texto foi supervisionado pela professora Sara de Almeida e publicado originalmente no Esquerda Diário, órgão do Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT)

Foto: Macacos do Sul. Fonte: Esquerda Diário.

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