O reconhecimento social da identidade de gênero ainda é um desafio para as pessoas trans

Por Adriana do Amaral
Ser mulher trans ou mulher travesti numa sociedade machista e misógina é correr risco de vida
Paulistana, promotora legal popular do município de São Paulo, agente de prevenção do CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento) Henfil e ativista da causa LGBTI, Laura Prevatto nos conta como as mulheres trans e travestis vivenciam ainda mais duramente o universo do preconceito e discriminação pelo fato da sua identidade feminina. Como mulheres, elas são alvo de violência cem vezes maior do que os homens trans.
CONSTRUIR RESISTÊNCIA – Por que as pessoas que desconhecem o universo da transexualidade confundem identidade com sexualidade. O senso comum tende a resumir tudo a sexo, quando na verdade a questão é existencial. Você poderia resumir?
LAURA PREVATO – Eu não acredito que as pessoas desconheçam o universo da transexualidade. O que eu acho é que a população comum, heterogênea, reduz a população LGBTI às práticas sexuais. Para mim, isso é um fato. A gente vive numa sociedade que foi construída nessa ideia binária. Ou seja, que existe homem e existe mulher e qualquer “resto”, que não se encaixe nesse padrão, não é considerado gente.
Outra grande questão nesse binarismo é o fato de que a ideia de mulher também é recente, sendo instituída ao longo dos séculos XVIII e XIX. Antes disso, não existia a mulher, mas homem com pênis e homem com pênis para dentro. Uma imagem que, querendo ou não, acabou se estruturando com muita rapidez na sociedade do patriarcado, até mesmo devido à misoginia.
Infelizmente, as mulheres ainda são consideradas inferiores, e sofrem por conta do estigma de gênero. Embora, obviamente, estejam à frente das pessoas LGBTI.
CONSTRUIR RESISTÊNCIA- Uma de vez ouvi que para deixar aflorar uma nova identidade de gênero é preciso encarar um processo de luto, quando um homem ou mulher “morre” para dar lugar a uma nova personalidade trans. É isso mesmo? Qual o maior obstáculo a ser encarado, pessoal e socialmente?
LAURA – Matar a antiga personalidade, ou a antiga persona. Na verdade, a gente é quem a gente é; não somos quem queremos ser, mas quem a gente pode ser. Justamente porque somos podados pela sociedade e não podemos colocar para fora a nossa verdadeira identidade. Então, de fato: sim, é preciso morrer para nascer.
Acredito, no entanto, que não seja apenas a questão da identidade de gênero, mas também a questão de raça. Exemplificando: essa coisa tão atual da valorizar da beleza negra, de gostar dos traços, de fazer a transição capilar e parar de alisar o cabelo e assumir o cabelo crespo, rompendo com os padrões. Tudo isso significa a gente matar aquela pessoa que nos impuseram, que a gente tinha de ser. Poder deixar nascer o ser que, na verdade, sempre esteve aqui dentro, mas que foi podado de existir.
CONSTRUIR RESISTÊNCIA: Além do homem trans e da mulher trans, há o universo da mulher travesti. Você poderia nos explicar se algum deles sofre mais repressão/violência a partir da sua opção pessoal?
LAURA – As mulheres trans e as mulheres travestis sofrem mais preconceitos do que os homens trans, mas mesmo dentro desse universo é preciso levar em condição vários marcadores. Ou seja, a questão da classe social, da formação, escolaridade, raça, faixa etária etc., tudo o que pode ou não fomentar ainda mais preconceito. As pessoas sofrem mais ou menos, minimizam ou maximizam de acordo com os marcadores individuais.
Os dados estatísticos, no entanto, mostram que morrem muito mais mulheres trans e mulheres travestis do que homens trans, numa média de 100 para um. É uma discrepância muito grande na violência que atinge uma identidade e outra. Justamente por conta desse patriarcado e dessa misoginia, que andam juntas. Ser mulher é algo pejorativo na sociedade.
Alguém que nasceu no privilégio supremo de ser homem, subestimar a si mesmo para virar ‘mulherzinha’ é motivo de chacota. Infelizmente, é assim que as pessoas pensam e o que justificaria a agressão. Só olhando as estatísticas que a gente consegue entender essa diferença entre os gêneros trans.
Além disso, tem toda a questão da performance em si. É mais fácil para os homens trans se camuflarem de acordo com a identidade com a qual eles se reconhecem, vestindo um moletom, um boné… O que acaba, de alguma maneira, garantindo uma tranquilidade social maior.
As mulheres trans e mulheres travestis têm uma postura diferente de se colocar e de se vestir. Um vestido tubinho, apertado, querendo ou não vai delinear todos os músculos, deixando a mostra o tônus
Eles não estão isentos de sofrer preconceito, violência, de serem assassinados por transfobia. É obvio que não, mas numericamente nem se compara com as violências contra as mulheres trans e mulheres travestis.
CONSTRUIR RESISTÊNCIA: Por que devemos celebrar o 17 de maio: Dia Internacional Contra a Homofobia?
Laura: Hoje, completam-se 2o, anos que a #OMS – Organização Mundial da Saúde- retirou a homossexualidade, que até então era tratada como homossexualismo (doença), do #CID -Classificação Internacional de Doenças, em 17 de maio de 1992. Isso, em âmbito de saúde porque, infelizmente, ainda persistem questões religiosas e de pessoas que tentam atribuir um comportamento como se fosse doença.
É importante enfatizar que ninguém incita ninguém a gostar de homem ou de mulher. É a sua individuação. Também por isso não usa mais “orientação sexual”, mas condição sexual. Ou seja,  a sua condição sexual particular. Como a pessoa se denomina:. bi, gay, pan, assexual etc.
Eu vejo o #17M como um dia de celebrar uma conquista. Uma das primeiras que a gente teve no final de século 21 e começando o século 21, como outras tantas, que  foram e são tão importantes.
Embora parte do mundo tenha superado essa questão, não podemos esquecer que muitos países ainda tratam a sexualidade como crime, podendo ser punido até com pena de morte.  A sociedade brasileira, por exemplo, ainda não consegue assimilar e cai nessa narrativa preconceituosa. Um país como o Brasil ser um tão homofóbico, na minha opinião, é bastante contraditório.
IMPORTANTE:
A legislação brasileira (Decreto Nº 8.727/2016) garante à pessoa trans utilizar o seu nome social. Instituições devem respeitar o nome escolhido. Sobretudo, não se deve questionar sobre a primeira identidade.
Conhecendo o universo diverso:
– nome social: o nome escolhido pela pessoa transexual ou travesti, com o qual se identifica e quer ser reconhecido;
– identidade de gênero: a forma como a pessoa se relaciona com as representações feminina e masculina independentemente do sexo atribuído no momento do nascimento;
Disque 100 – é o canal oficial que recebe denúncias sobre intolerância de gênero no Brasil;
Ainda é desconhecido o número de brasileiros transexuais, mas pesquisas indicam que 90% deles já sofreram algum tipo de violência. Para conhecer melhor este universo, a Rede Nacional de Pessoas Trans e está realizando um Censo Nacional.

 

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