Por Carlos Monteiro
Dia desses conversava com um amigo que me relatava momentos engraçados e histórias vividas absolutamente curiosas. Lembramos de sua primeira viagem a minha amada Portugal. Trago nas veias o sangue português com muito orgulho. Sabedor do carinho e da relação afetiva que tenho com o país além-mar, pediu-me referências e dicas de locais imperdíveis, comidas imprescindíveis e vistas incríveis para alvoreceres, entardeceres, cartões postais registrados de forma autoral.
Debulhei um rosário de informações como se estivesse rezando o terço na Sé de Braga. Tascas, imperial, bica, fixe e gira, frigorífico, casas de fado, castelos, ascensores, eléctricos, Lavra, Glória, Bica, a Baixa, o Alto, Santa Justa, Santa Maria Maior a Mouraria, Chiado, Alfama, o 28, o 15, freguesias, Pastéis de Belém, Confeitaria São Nicolau, passadeiras, pastelarias, Casa Brasileira, telemóveis, Pombalinas, Convento do Carmo, Cais do Sodré, Torre de Belém, da Gare do Oriente, obra de Calatrava, do Arco da Augusta, calceteiros, Jardim das Pichas Murchas, Azinhaga da Bruxa, Alentejo, Algarvias praias, Matosinhos, Mindelo, Leça da Palmeira, Alfacinhas e Tripeiros, Amoreira, Évora, Porto, a história da Inês de Castro, São Jorge, a Vicentina, Tunas, Florbela, Camões, Ruy Guerra, Saramago, Café Magestic, Pessoa, a Bertrand, a diferença entre facto e fato, que a francesinha é um sandes típico do porto.
Falei do Teatro Nacional Dona Maria II, na Praça Pedro IV – Praça do Rossio, da Adega Machado e do Café Luso, da Severa, da Amália, do Xutos & Pontapés, do Filho da Mãe, do Abrunhosa – gravado por Bethânia, “Quem Me Leva os Meus Fantasmas”, “…e a ursa maior eram ferros acesos…” -, Carminho, Zambujo, Ana Moura e Mariza, dos “Olhos Castanhos”, da “Casa Portuguesa”, da “Gaivota”, da “Mãe Preta”, de Piratini e Caco Velho, compositores brasileiros que em terra lusa, censurada pela PIDE do regime Salazarista – foi considerada subversiva por expor a triste realidade de seres humanos escravizados -, se tornou “Barco Negro”. Gravada inicialmente por Maria da Conceição, fez sucesso na voz de Amália em 1955, para a trilha do filme “Os Amantes do Tejo”, com toda a letra alterada, adaptação de um poema de David Mourão-Ferreira. Em 1978 a fadista se redimiu e gravou a versão original. “…Enquanto a chibata batia no seu amor/Mãe Preta embalava o filho branco do sinhô…”.
Claro, não poderia perder a oportunidade de ensinar algumas bobagens. Nunca se deve dizer que vive a fazer freelas (bicos) ou broches, que paneleiros não são profissionais na arte da latoaria, que entrar no rabo da bicha não tem o mesmo significado do Brasil, que há uma diferença crucial entre o bombeiro e picheleiro, entre o banheiro e a casa de banhos. Falei do duche, do autoclismo, da retrete e da sanita. Indiquei como se dirigir a um empregado de mesas, se me faz favor. Que pedir um gelado não é entrar numa fria. Que miúdos são crianças assim como os putos e que rapariga é uma moçoila. A canalhada é um grupo de putos a fazer algazarra. Do breque e dos travões, da porra recheada que é porreiro, das punhetas de bacalhau, da sopa de grelos, do cacete e da pastilha elástica. Caralho e caralhinhos não são pejorativos, e estar cheio de pica é um bom negócio. Cuidado com a rata crica.
Contei-lhe uma história deliciosa, relatada por Mário Prata em seu “Schifaizfavoire” – Dicionário de Português, pela Editora Planeta, dando conta que essas ‘confusões’ linguísticas salvaram-lhe a vida. Quando estava muito mal, internado em estado grave, com transfusões de sangue e bolsas e mais bolsas de soro, que chamava carinhosamente de vinho branco e tinto, sentia que iria sucumbir tal era sua fraqueza… eis que surge uma enfermeira adentrando ao quarto do quase moribundo, que mais parecia um sepulcro e solta um tonitruante alívio verbal:
— Ó seu Prata, trago a pica das quatro, vai ao braço ou ao cu? Mesmo sem forças para aprazer-se, gargalhou. Salvou-lhe não o Rum Creosotado, mas a eficácia da senhora, prova cabal que rir é o melhor remédio.
Dicas dadas, informações relatadas, contatos passados, dias depois, ligo para saber como andavam os preparos àquela altura. Encontrei o amigo aparvalhado de indignação. Ao tentar reservar os hotéis para estada, só os encontrava com o pequeno almoço. Como assim? Não ficaria para refeição. Por que pagar por algo que não consumiria? Explique-lhe que era apenas o café da manhã. Naquele momento me dei conta das dificuldades que teria com hábitos, com a objetividade lógica portuguesa e, pasmem, com a língua.
Viagem feita, chegada à Portocale, felicidade só, em plena primavera lisboeta, quiçá uma quimera. À Ribeira para encostar a cabeça, doce e macia almofada do Tejo. Pura poesia e logo uma indignação. Fumante inveterado logo foi atrás de tabaco, fumos diários. Ao pé do balcão da Tabacaria Mónaco a fatídica pergunta:
— Tem Marlboro? O atendente, com aquela cara de pasmo, olha para o meu amigo como se ele fosse papalvo e responde com um certo grau de deboche:
— Temos! Meu amigo achando que estava no Rio, onde o balconista, no máximo, perguntaria se de caixa ou maço e a versão já buscando-a na prateleira, ficou lá parado aguardando. Mais uma vez: — Tem Marlboro aqui? Já completamente indignado o vendedor trava com ele o seguinte diálogo:
— Ó pá, anda cá; não tens o que fazer? Achas que estou a brincar? Entras numa tabacaria para ficar a perguntar se temos tabacos de marca, o que estás a pensar? É o que estás a fazer gajo, anda-te daqui já. Pondo-no-lo para fora do estabelecimento.
O português, de um modo geral, é objetivo ao responder o que é inquirido. Em outra passagem, meu caro amigo pergunta à concierge do hotel:
— Como chego ao Castelo de São Jorge?
— Apanhas um táxi à porta e indicas d’onde queres ir.
— Mas eu quero ir a pé…
— O senhor não apontou tal detalhe.
Indicações feitas, Sol causticante, meu amigo e a família chegam ao destino que se encontrava fechado. Às tintas, volta e cobra do atendente o fato com indignação plena. A resposta veio de bate-pronto:
— O senhor me perguntou como se chegava lá, não me questionou se estava ou não a funcionar!
Errado não está!
Nota do Autor:
Esta crônica é uma homenagem aos meus queridos Carlos do Carmo, Romildo Guerrante, Pasquale Cipro e Sônia Castro Lopes.
“…Lisboa no meu amor, deitada/Cidade por minhas mãos despida/Lisboa menina e moça, amada/Cidade mulher da minha vida…”
Carlos Monteiro é jornalista e fotógrafo