Por Ana Lúcia Brandão
As pessoas e suas heranças simbólicas. O bisneto de Lobato, Ricardo Monteiro Lobato me pediu para escrever a orelha do seu primeiro livro infantil “Nosso amigo João de Barro”. Uma história que envolve aquela curiosidade da Emília, “a eterna” (como meu pai a intitulava). O livro saiu bem infantil e divertido. Ilustrado pelo Fábio Scarenzi, que já foi o Visconde de Sabugosa lá no Museu Sítio do Monteiro Lobato e domina os pincéis com traços plenos de humor.
Eu então resolvi aceitar o convite de estar presente ao coquetel do prefeito e ao lançamento do livro. O prefeito recém empossado, Sr. José Antonio Saud Junior, do MDB, claro, enviou sua vice-prefeita para representá-lo. Uma tradição das prefeituras brasileiras – prefeito algum prestigia a Cultura neste país. Nem mesmo o nome Monteiro Lobato no sobrenome do Ricardo conseguiu essa façanha. Mas o encontro entre os apaixonados por Lobato, com Emilia e Visconde presentes e aquele Museu Sítio entre árvores valeu a noite e a nossa comemoração. O azar foi do prefeito que não foi, como diria a Emília.
Bom, Lobato é um fenômeno de uma força imaginativa sem igual. Observo e escrevo sobre isso, tanto enquanto leitora na infância, quanto profissional de atuação nas áreas de Literatura Infantil e Juvenil, Comunicação e editorial. E claro, em momentos de vida acadêmica. Lobato ultrapassa fronteiras e áreas sempre. Estou com um palpite de que só a Física quântica pode vir a explicar tal fenômeno um dia. Feito Emília, já pedi ajuda da Andreia Sanchez para dar conta desta incrível questão! (e lá vai o cutucão”).
Em décadas de trabalho ligado a Biblioteca Infantil e Juvenil Monteiro Lobato da megalópole de São Paulo, Lobato era presença quase diária lá e quase sempre envolto em novidades, descobertas e novas relações entre assuntos com os quais se envolveu e que não foram poucos.
Não se esqueçam – ele faleceu em julho de 1948! Em contações de histórias, peças teatrais, grupos de estudo, pesquisadores, parentes, e aficionados, um fenômeno sem igual. E missivista ainda por cima, às vezes acho que escrevia cartas até dormindo! Ou não dormia. Em idos de 1986, 87 eu ouvia a Dona Hilda Vilela e dona Lenyra Fracarroli atrás de padres e pessoas que diziam ter cartas de Lobato e isso acontece até hoje! Hoje em dia, eu comumente ando com suas cartas escolhidas e vira e mexe abro em uma e encontro-o comentando alguma questão que ainda hoje é atual. Como o Brasil é um país de problemas crônicos.
Hoje a biblioteca daqui de São Paulo é pura resistência, porque desde 2006 houve uma junção de bibliotecas infantis com públicas e claro que as infantis perderam voz e respectivas verbas e a Mário de Andrade virou a única, rica e famosa! Tadinha, minguando, minguando, mas digna.
Como são estranhos esses administradores da área Cultural, sabe….assemelhados aos animais fantásticos da Rowling, fazem tudo o que não se espera deles, mas o que se espera… Por sinal, lá pertinho, no Cemitério da Consolação, ambos, Lobato e Mário de Andrade devem estar virando no túmulo com tanta ignorância, eles e Oswald de Andrade. Pois saibam que Monteiro Lobato esta aparte das comemorações dos 100 anos do Modernismo da Mário de Andrade. Dá para acreditar numa coisa dessas…
Por incrível que pareça, eu nunca tinha ido a cidade natal de Lobato – muito trabalho e muito siso sempre foi meu lema. Só que a Pandemia promoveu mudanças curiosas. Senti o cheiro de boas novidades lobatescas no lugar de malversações de sua obra no domínio público.
Cheguei a Taubaté e fui direto à Igreja da Matriz, a Catedral de São Francisco das Chagas, que foi construída em 1645, por ordem do Capitão Jacques Felix, fundador do povoado que veio a se tornar freguesia e depois a cidade de Taubaté.
Criada a Diocese de Taubaté, a matriz passou a Catedral de um bispado de toda extensão do Vale do Paraíba, em junho de 1908. O menino José Renato Monteiro Lobato foi batizado nela. É um lugar com uma energia especial. Anos mais tarde, adulto, calças longas, doutor e barbado, ele se casa na Igreja com Purezinha, mas nega ser católico ao padre, que para não rasurar a certidão, tascou um “a” na frente de católico, como me contou um aficionado de Monteiro Lobato, o seu Osni Lourenço Cruz, lá mesmo na visita que ele fez comigo e com Monica Martins à Capela dos Viscondes de Mossoró e Tremembé, no Cemitério da cidade.
Mas voltemos ao meu passeio solitário pela cidade. Notei no caminho pelo centro que havia estátuas de vários bispos . Percebe-se que o poderio da Igreja Católica foi grande ali e talvez ainda se mantenha. A Catedral que citei fechou às 12hs e tinha um bom grupo de pessoas por lá rezando.
Pertinho desta Praça Dom Epaminondas, eu passei pela Praça Barão de Rio Branco e vi ali um grande stand da Claro e imaginei como teria sido aquilo ali no início dos anos 1700. Passei na Banca de Jornal e comprei o jornal da terrinha. Adoro ler os jornais locais. Abri e dei com uma matéria sobre o dia em que o Senador Getúlio Vargas esteve em Taubaté nesta tal praça, exatamente ali onde havia o stand da Claro, em um palanque para buscar votos para a eleição a presidente, em 1951. Bem, a matéria afirmava que do outro lado da praça estavam os opositores ao governo e de lá veio um tiro contra Getúlio Vargas, aparado por seu guarda-costas na ocasião. Dizia esta matéria que quem atirou foi Jaures Guisard. O Almanaque Urupês online nega, diz que é boato. Bom, a sobrinha neta que encontrei em Taubaté e o Osni Cruz confirmaram.
Cabe aqui contar que sobre a prisão de Lobato disse Edgard Cavalheiro na introdução do livro “Urupês” de 1954: “A prisão apressou a morte de Lobato. Nunca mais foi o mesmo, depois que de lá saiu. Denunciara ele, ao então ditador Getúlio Vargas, aquilo que lhe parecera fruto de uma sombria e torpe conspiração contra os mais altos interesses da economia nacional. E o Sr. Getúlio Vargas, em lugar de instaurar um inquérito em que se apurasse a procedência ou não de tal denúncia, toma, com aquela sua inconsciente displicência, o partido dos acusados, e, numa eloquente cumplicidade com eles, manda, simplesmente prender o acusador”. (pág.50). Bom, a meu ver, parece que essa ”inconsciência” quase lhe custou a vida na terra natal do escritor e garantidamente ele deve ter se lembrado de Lobato naquele momento.
Na década seguinte, de 1964 a 1969, Jaures Guisard foi prefeito de Taubaté. Logo pensei em Monteiro Lobato. Já escritor de renome e completamente contrariado pelo governo de Getúlio Vargas quanto a exploração do petróleo, no início do Estado Novo amargou uma prisão na cela de número 1 no Presídio Tiradentes, em São Paulo. E Getúlio Vargas vai lá na sua terra natal pedir votos dez anos depois. Diante desta notícia antiga, que eu só tomei ciência neste dia, pus-me a pensar que realmente Monteiro Lobato não poderia ter vindo de uma cidade pacata e monótona como as “Cidades Mortas” que ele descreveu no livro.
Por sinal, outro dado curiosos sobre Taubaté vem de novo da família Guisard que há gerações guardava uma série de cartas trocadas entre Monteiro Lobato e Felix Guisard, material que acabou de ser publicado graças ao Osni Lourenço Cruz. Soa inacreditável e acho que a Secretaria Municipal de Cultura do Municipio de São Paulo deve urgentemente adquirir este e os outros livros sobre Monteiro Lobato para que todos se informem melhor sobre esta personalidade única.
Quanto às atividades no Museu Monteiro Lobato, passei dois momentos mágicos nas tardes passadas lá. Primeiro graças a um tour pelas árvores que o Visconde de Tremembé reuniu ali que fizemos rodeadas de crianças por todos os lados, tendas com peças de teatro para crianças, palco com gente contando histórias para crianças, uma floresta da Cuca cheia de imprevistos e as exposições das aquarelas de Monteiro Lobato e os livros colecionados por Monica Martins. Foi gratificante ver este museu Monteiro Lobato tão vivo e cheio de crianças, um lançamento de livro tão animado por gente de todas as idades e Lobato tão bem comemorado e de certa maneira vingado nesta lembrança levantada pelo Jornal de Taubaté.



Ana Lúcia Brandão é formada em Letras, mestre e Doutora em Comunicação e Semiotica. Articulista na área de Literatura Infantil e Juvenil. Foi resenhadora crítica da “Bibliografia Brasileira em Literatura Infantil e Juvenil” (1987-2007).
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Belo texto. Intenso, generoso, tb leve, gostoso de ler, pleno de estima, amor por tudo o que nos associa, a obra de Monteiro Lobato, sua cidade natal, Taubaté, a igreja de lá, o bisneto Ricardo tb bom escritor, os justos desentendimentos de Lobato com Getúlio, um tiro sem morte na praça da cidade, Emília, mais o Sabugosa, tanta informação tão gostosa de ler e saber, além de belas fotos. Valeu! Que bom um tempo assim solidário, fraterno, com um jeito melhor de ser e viver no Brasil. Um Brasil sem ódio, sem prepotência, sem armas, sem violência, sem autoritarismo. Um Brasil solidário e fraterno, este nós queremos e para esse Brasil dos Lobatos mudaremos! Decerto gratos ao texto feliz e em paz de Ana Lucia Brandão, lobateira sempre, a vida inteira. Maravilha!
Parabéns pelo texto!!!