Por José Antonio Leite
Violência policial contra população trabalhadora é a arma de uma elite que desconhece e despreza o Brasil
Sempre que um terremoto político ameaça trazer consigo um tsunami, o prognóstico do filósofo marxista Antonio Gramsci emerge. Você o deve ter lido há pouco em sua timeline: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tardo a nascer; e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”. Assim foi, recentemente, com a eleição do presidente argentino Javier Milei (La Libertad Avanza) e sua motosserra de cortes nos gastos sociais. Entre nós – no momento em que um ano nos separa da tentativa do golpe de estado de 8 de janeiro – o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) brande seu martelo privatizador e promete eliminar as câmeras de vídeo fixadas aos uniformes dos policiais militares.
Recentemente — contrariando especialistas — o governador declarou à TV Globo que as imagens gravadas pelas câmeras não protegem a população. Portanto, não investirá em tais equipamentos. A PM dispõe hoje de 10.125 câmeras corporais. Nenhuma, entretanto, foi adquirida pelo atual governo. O fato é que Tarcísio interrompeu três anos consecutivos de diminuição da letalidade dos PMs. Agentes do Estado mataram 20% mais pessoas em 2023 em relação a 2022. O Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial, ligado ao Ministério Público de São Paulo, aponta 366 mortes por intervenção policial no estado, frente a 304 mortos em 2022.
Já o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que, entre 2019 e o ano passado, as mortes caíram 62,7%. Ainda assim, há pouco a comemorar. Em 2022, uma pessoa negra foi morta por intervenção policial a cada 4 horas em oito estados do país segundo a Rede de Observatórios.
Autoritarismo, racismo de nossas elites reacionárias; falta de transparência e de controle sobre a tropa; mais compra de armas e pouco investimento em inteligência, somadas a uma política estatal de segurança pública que resulta no assassinato de pobres, pretos e crianças na rota de “balas perdidas”, têm tudo para alimentar a barbárie e fazer renascer os Esquadrões da Morte.
“Direitos humanos para humanos direitos”
Relembro. Há dez anos, a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, sob presidência do então deputado Adriano Diogo (PT), tentou autopsiar a besta-fera do Esquadrão da Morte, atuante entre 1968 e 1971, período em que começaram a aparecer cadáveres na periferia de São Paulo. Seu lema era lei: “Para cada policial morto, dez bandidos irão morrer” — variação do “Direitos humanos para humanos direitos”.
A exemplo do que ocorre hoje nas comunidades da periferia, na década de 1970 a PM provocava mais medo e ódio do que respeito. Para mostrar serviço e vontade de “proteger o cidadão”, policiais militares passaram, então, a barbarizar a periferia, retirar detidos do Presídio Tiradentes ou sequestrar “suspeitos” inocentes e os executar nas quebradas dos bairros afastados.
Alguns dos cadáveres foram localizados em valas comuns no Cemitério de Perus (zona noroeste de São Paulo). O líder dessa “operação policial”— apoiada pelo governador da época, Abreu Sodré — era o delegado Sérgio Paranhos Fleury, ícone da repressão e tortura de presos políticos durante a ditadura.
Há quatro anos, um relatório do Departamento de Estado do governo dos Estados Unidos, publicado pela imprensa, revelou que esquadrões da morte no Brasil haviam assassinado o dobro do número de vítimas da ditadura civil-militar. Mais de 50% das pessoas ligadas a tais grupos de extermínio eram formadas por policiais.
Carandiru
Então, câmeras fixadas às fardas eram artigo desconhecido ou coisa de filmes do James Bond, o agente secreto 007. Tais equipamentos também inexistiam nos fardamentos dos policiais militares que, em 1992, chacinaram a sangue frio, com 3.500 tiros, 111 detentos desarmados na Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru. Não há registros filmados dos disparos no Pavilhão 9. Porém, a chacina foi condenada internacionalmente por instituições em defesa dos direitos humanos. Após arrastar-se por anos, o julgamento dos envolvidos no Massacre do Carandiru foi suspenso em 2022. O prédio acabou implodido entre 2002 e 2005. No local foi instalado o Memorial Espaço Carandiru, único espaço dedicado à história da chacina. Em outubro passado, porém, o governo estadual suspendeu suas atividades.
Hoje, partidários do ex-presidente Bolsonaro (PL) seguem apoiando-se no chavão “bandido bom é bandido morto”, tão caro a uma parcela da população que identifica na violência, no punitivismo ou no populismo penal, a “salvação da Pátria”. Há também quem suspire aliviado com as invasões ao estilo “Operação Escudo”, que em julho passado resultou na morte de 30 pessoas e na prisão de outras 296 — em sua maioria trabalhadores e jovens negros da Baixada Santista. Aliás, parte dos policiais não usava câmeras.
Na violência e no silêncio dos mortos esses senhores encontram, há décadas, o instrumento para estabelecer a “autoridade” e a “paz” em benefício dos “homens de bem”. Residentes nos condomínios de luxo de Miami, dos Jardins e da Barra da Tijuca, se veem seguros, a quilômetros das favelas, dos cortiços e das palafitas de um Brasil que desconhecem e desprezam.
José Antonio Leite é jornalista com atuação nas redações de O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Folha da Tarde, Diário Popular, DCI e Editora Abril.