Por Carlos Monteiro
Ainda em terras lusas, pelo menos no pensamento, me apercebi o quanto temos diferenças em nossa língua. Nossa pronúncia é a mesma que Pedro Álvares Cabral bradou: ‘terra a’vissssta’. Quase um sotaque paulistano arrastado nos ‘esses’. Mantivemos um arcaísmo, embolorado para nossos pares além’ar. A ‘Flor de Lácio’ brasileira é uma mistura de línguas indígenas, dialetos vindos de África, trazidos por seres humanos escravizados e, obviamente, português, óh pá! A questão maior é que muitas palavras têm significados completamente diferentes nos países lusófonos, nomeadamente entre Brasil, Portugal e Angola. Parece que não, mas é possível não se entender patavina de uma conversa entre um português e um brasileiro e vice-versa.
Hospedado numa morada, alhures, em Lisboa, em um sítio da cidade muito especial, com pequena avença e propina paga em dia a um senhorio para lá de fixe, apartamento T4 penthouse, com a vantagem de não estar em banda e não ser rés do chão, tendo confortáveis casas de banhos e ricamente forrado por alcatifa, catre com candeeiros de mesa e belos candeeiros de tecto, especiais velharias do século XVI, passei o verão de 2019. Com vista para a foz do Tejo, apreciava meu pequeno almoço composto de cacetes frescos com côdea crocante, uma chávena de chá com mascavado, um galão fresco, uma bica quente, sumo de lima cheio de pica, uma água lisa natural, dióspiros, ameixas-do-japão, magnórios sem grainhas, ananás, açorda, sandes francesinha, uma tosta, fiambre comprado no talho da esquina, compota, natas adquiridas na pastelaria, omeleta com orégão, cebolinho e salsa, bitoque e um porto apanhado na cave. Tudo sobre individuais vindos da Madeira. Pela manhã, temos mais olhos que barriga, mas não jogamos o baralho todo!
Uma boa volta por Lisboa, em Monsanto, a passear o cão pisteiro – d’água – limpo de carraças, evidentemente com trela e açaimado, para que todos possam fazer miminhos e festinhas, estando liberto para passear no relvado. Vou de trotinete com minhas sapatilhas modernas, calçadas com peúgas coloridas e atacadores novos, fato-macaco e camisola do Porto. Auriculares com “Xutos & Pontapés”, “The Gift” e Abrunhosa bela banda-sonora. Sento-me para leitura rápida do Correio e ver as novas, em especial, a banda desenhada.
Volto à casa, deixo o cão com a ama e me preparo para ir ao ginásio. Opto por partir a conduzir o descapotável encarnado que não é chaço, sendo absolutamente fiável estando sempre com os mínimos ligados. Dou boleia a uma rapariga vizinha, cachopa transmontana; à borla é sempre melhor. Elétrico, autocarro, comboio, métro e ligeiros demorarão; estamos na hora de ponta, abasteço com gasóleo, deslizo pelo alcatrão bué de brutal até à primeira portagem da A1. Fonix, este trânsito não está a andar. Já estou às tintas com isso! Acho uma maçada ir ao ginásio, mas é preciso pela saúde. Troco as gangas e a t-shirt por um fato de banho no balneário, deixo-as no cacifo. A casa está cheia de betos que mal largaram o biberão e só usam calões. Cá é necessário cuidar para não me magoar nos exercícios. Um arranhão e um penso rápido, comprado na farmácia, tudo resolvem.
Às doze badaladas no sino da Sé de Lisboa, enfim, é hora do almoço. Vou a uma tasca tradicional da Alfama, peço a ementa. Para as entradas, pastéis de bacalhau, pataniscas, punhetas, um caldo de grelos, santolas e gambas. Para o prato principal, curgete recheada com delícias do mar e pimentos temperados com piri-piri e alho-francês, esparguete com um mix de enchidos especiais: alheira, belouro, butelo, cacholeira, chouriço, farinheira, maranho, morcela e salpicão, todos fumados. Tudo isso ao pé de uma esplanada gira, com loiça “Caminho das Índias”, acompanhados de um fado tradicional nas guitarras choramingas e de uma caneca, um fino ou um imperial. Para a sobremesa, um gelado de medronhos sobre uma tarte, uma bica, uma gasosa fresca, um whisky e um rebuçado para adoçar. Prontos, tá-se bem, menos as gambas que tinham gosto de esferovite agrafadas.
Uma volta para a digestão apreciando as montras e os peões pelos passeios da rua do Comércio e da Augusta. Compro um peluche e um casaco de couro, vindo das Caraíbas, numa pessoa coletiva de retalho para prendar.
Durante à tarde, aciono o comando e assisto, no ecrã em directo, aos quartos de final do campeonato. Aprecio o desporto nacional. Meu Porto está a liderar. O selecionador escalou um time de prima. A equipa dos Dragões, metida em camisolas azuis, faz história. O guarda-redes, sempre atento para não permitir golos, está a cuidar bem das balizas, não há ‘fora do jogo’. Os pontapés de baliza e de canto são todos bem apanhados. Final 2-0. A claque está em festa. Agora vamos a meia-final. Abro uma jola, para comemorar, utilizando um tira-cápsulas moderno, prenda de um amigo. Ando a beber demais.
À noite, após um duche aquecido pelo termoacumulador, me aperalto grifado. Não posso ficar piroso nem parolo, não me quero fatela. Estou quase um marialvas, aboletado num fato de linho beige vindo de Moscovo. Confiro se estou com o bilhete de identidade e a carta de condução, levo um chapéu de chuva, passo no multibanco para levantar guitos e no mealheiro para uns cêntimos, vou aos copos com a malta. Por motivos óbvios não uso a carrinha, apanho um ligeiro e vou de pendura. Além das ruas com paralelos escorregadios, não há muitos parques pela cidade. Sou averso a sarilhos. Estudo na sebenta da Lei.
Na casa de espetáculos uma banda em digressão faz um concerto espetacular, toda gente a aplaudir. Encontro uma rapariga gira, com um grande totó e unhas envernizadas em grená. Grifada num guião de Luís Carvalho, maquilhagem irretocável sem nenhuma mossa nem nódoas. Arrisco um piropo…? Melhor não, isso dará em águas de bacalhau. Bela miúda, tem ares de hospedeira de bordo, simpática e agradável, educada e prendada. Porreira!
É tarde, não quero ficar todo cego nem apanhar uma cabra. Vou basar. Continuação.
Se calhar…
Carlos Monteiro é Jornalista e Fotógrafo