Os novos universitários

Por Sonia Castro Lopes

 

O ministro da economia, Paulo Guedes, com suas frases infelizes, mais uma vez destilou preconceito contra as classes populares. Segundo ele, o filho do porteiro de seu edifício zerou a prova do vestibular e, mesmo assim, foi convidado a ingressar numa universidade privada, que seria financiada pelo Fies. Em primeiro lugar, quem zera a prova está automaticamente reprovado, portanto, cancelado do sistema. Em que pese ter ocorrido algum erro de comunicação, a verdade é que incomoda às elites ver os filhos das camadas populares desfrutando dos bens e serviços antes oferecidos apenas aos seus. Bom exemplo disso encontramos no filme A que horas ela volta, no qual Jéssica, a filha da empregada é aprovada no vestibular deixando Fabinho, o filho dos patrões, de fora. Ora, onde já se viu filho de porteiro, filho de empregada chegar à universidade, concluir a graduação, ser aceito em cursos de mestrado e doutorado? Pode isso? Pode. Meninos, eu vi!

Em 2003 a primeira universidade a adotar o sistema de cotas para negros e estudantes egressos da rede pública de ensino foi a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com a aprovação da Lei nº 3.524/2000, que modificou os critérios de acesso às universidades estaduais fluminenses reservando 50% das vagas para estudantes oriundos de escolas públicas. Em 2001, foi aprovada a Lei nº 3.708/2001, que destinava 40% de vagas para candidatos autodeclarados negros e pardos.

Atualmente, os critérios de seleção encontram-se balizados pela Lei nº 8.121, de 27 de setembro de 2018, que prorroga a reserva, por mais 10 anos, para as universidades públicas estaduais, com a inclusão de quilombolas e estabelece os percentuais em 20% das vagas reservadas a negros, indígenas e alunos oriundos de comunidades quilombolas, 20% das vagas reservadas a alunos oriundos de ensino médio da rede pública e 5% das vagas reservadas a estudantes com deficiência, filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão de serviço.

Essas ações afirmativas, todavia, não surgiram apenas na comunidade interna da UERJ. Foram pensadas e implementadas por meio da mobilização coletiva no exterior da universidade, como o Educafro (Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes), o PVNC (Pré-Vestibular Para Negros e Carentes), além de representantes do movimento negro do estado do Rio de Janeiro que fizeram um lobby intenso na Alerj para que tais leis fossem aprovadas.

Justamente em 2003 tive a oportunidade de trabalhar na UERJ quando lecionei História da Educação nos primeiros períodos do curso de Pedagogia. Das três turmas que possuía, uma era totalmente composta por alunos cotistas. Estranhei, inicialmente, o critério usado para aquela  enturmação que julguei, no mínimo, equivocada. Depois entendi que a turma serviria de termômetro para futuras análises e adequações do sistema de cotas na universidade. Pois bem, foi uma das melhores turmas que tive dentre tantas nas quais lecionei. Eram atentos, interessados, liam todos os textos recomendados e na hora da avaliação me surpreenderam com a média mais alta do que a obtida pelas turmas onde não havia cotistas.

Nessa mesma universidade nossa diarista Cláudia ingressou quinze anos depois. Com quase 50 anos preparou-se em um pré-vestibular comunitário e passou para o curso de serviço social com um total de pontos que garantiria sua aprovação mesmo entre os não cotistas. Além dela, outras pessoas de sua comunidade – Cidade de Deus – na zona oeste do Rio ingressaram em universidades de ponta. Mariana, 21, estuda direito da UERJ, Débora, 26, é aluna do curso de ciências sociais da mesma universidade, Jaqueline, 24, aprovada em 2018, conseguiu ingressar em comunicação social – jornalismo na UFRJ. Todas, sem exceção, conseguem acompanhar bem o curso, tiram boas notas e seu desempenho não fica aquém dos colegas não cotistas.

Vale lembrar que política de cotas, bem como o Prouni (Programa Universidade para Todos) foram medidas criadas durante o governo Lula, tendo à frente do MEC o ministro Fernando Haddad. O Fies – Fundo de Financiamento Estudantil – foi criado em 1999 no governo de Fernando Henrique Cardoso e, posteriormente, ampliado por Lula para oferecer condições mais vantajosas para que jovens de baixa pudessem pagar universidades privadas e quitar o empréstimo com um prazo mais dilatado. Assim, os estudantes cotistas que não logram aprovação em universidades públicas procuram as instituições privadas e dispõem do Prouni ou do Fies para obtenção de bolsas ou financiamento das mensalidades. Essas ações combatem as desigualdades impostas por um sistema educacional excludente permitindo que fossem, aos poucos, sendo superadas. A determinação e resiliência desses jovens diante de tantos obstáculos tornaram-se decisivas para subverter o roteiro de vida que lhes foi destinado, já que o ingresso na universidade transformou suas vidas. Após a graduação muitos continuaram seus estudos em cursos de pós-graduação stricto sensu.

Fui responsável pela formação de milhares de professores, ajudei a formar pesquisadores, orientei monografias, dissertações e teses. Convivi com estudantes egressos de camadas populares que tiveram o acesso à universidade cada vez mais ampliado. Filhos de mães solteiras, trabalhadoras, famílias sem pai, gays, moradores de periferia, de comunidades carentes. Vi esses jovens crescerem, tornarem-se mestres e doutores, sendo aprovados em concursos, formando uma nova geração de professores conscientes e críticos. Quase todos se beneficiaram dessas políticas públicas inclusivas.  A universidade brasileira hoje se caracteriza pela diversidade, pelo respeito às minorias e aos mais pobres. Só os imbecis que servem a esse governo medíocre ainda não entenderam que é impossível retroceder nessas conquistas.

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