Lembrai-vos de 37!

Marly Motta

Marly Motta

 

Se a referência fosse a 64, certamente muitos se lembrariam, uma vez que a memória dos eventos que desembocaram no golpe de Estado ocorrido em 31 de março é um campo de disputa entre diferentes interpretações sobre o significado da derrubada do presidente João Goulart e a tomada do poder pelos militares. Para hoje, 31 de março de 2021, são esperadas manifestações que, 57 anos depois, reafirmam o que se costuma chamar de “usos políticos do passado”.

Agora, o que há para lembrar em 1937? O que foi mesmo que aconteceu no dia 10 de novembro, há 83 anos atrás? Conhecido como “golpe silencioso”, nesta data foi decretado o Estado Novo, período ditatorial sob o comando de Getulio Vargas, que presidia o país desde a vitória da chamada Revolução de 30. Sua longa permanência à frente da presidência do país (1930-45; 1951-54) é um bom indicativo da capacidade de lidar com os mais diversos instrumentos de se manter no poder, ora, se adaptando às mudanças do xadrez político, ora, impondo o rumo e o ritmo dessas mudanças. Se, nos primeiros tempos de governo, se cercou da “companheirada radical” dos tenentes de 22, a partir da chamada “guerra paulista” de 1932 – o conflito aberto entre São Paulo e a União –, Vargas percebeu que deveria estabelecer algumas metas para o prosseguimento de seu projeto de poder. Em pauta, a elaboração de uma nova Constituição, já que a de 1891 fora revogada, e outra ainda não fora promulgada. Vale dizer que, em seus primeiros anos como “presidente provisório”, Vargas havia governado por decreto. Como dizia meu avô, o uso do cachimbo deixa a boca torta.

Por isso mesmo, um de seus principais objetivos seria a permanência à frente do governo, o que lhe foi garantido pela Carta de 1934. Aceitou a eleição para o cargo, por voto indireto, pela Assembleia  Nacional Constituinte eleita no ano anterior.  Com mandato de quatro anos, vedada a reeleição, Vargas teria que lidar com essa nova dinâmica política que, sabemos, iria desembocar, três anos depois, no golpe que instaurou a ditadura do Estado Novo, e impôs ao país as instituições autoritárias contidas na Constituição outorgada em 1937.

A questão que se coloca é: o que aconteceu ao longo desses três anos que levou à falência essa experiência constitucional entre 1934 e 1937?

A década de 1930 ficou marcada por uma grande polarização ideológica no mundo. No caso do Brasil, os extremos eram representados pelo comunismo e pelo integralismo. Esse foi o pano de fundo a partir do qual Vargas obteria do Congresso amplas concessões de poderes excepcionais que fortaleceram o Poder Executivo, e que conduziriam a um fechamento progressivo do regime. Um dos principais marcos dessa rota foi a aprovação, em março de 1935, da Lei de Segurança Nacional, que viria a ser um instrumento legal de longa duração na tradição jurídica do país. Ainda em 1935, no final de novembro, outro evento reforçaria o apoio a medidas autoritárias: levantes de militares comunistas resultaram em ataques a quartéis em vários pontos do país, no que ficou conhecido por Intentona Comunista.

A repressão se generalizou a partir de então, em um caudal de medidas excepcionais, como a aprovação do estado de sítio – prorrogado por quatro vezes sucessivas, por 90 dias cada vez, ao longo de 1936 –,  a demissão sumária de funcionários públicos, a destituição e prisão do prefeito eleito do Rio de Janeiro, então capital federal, sem falar no caso de parlamentares que perderam a inviolabilidade de seus mandatos, por meio da concessão, pelo Congresso, de licença para processá-los. Outras instituições foram igualmente golpeadas, como o Judiciário. Em setembro de 1936, em flagrante medida inconstitucional, o Congresso aprovou o Tribunal de Segurança Nacional, que passou a julgar crimes políticos e contra a segurança nacional.

No âmbito desse projeto de nacionalização da política brasileira, três atores políticos eram especialmente relevantes: as oligarquias regionais, os trabalhadores e os militares. Por força da conjuntura atual, vamos lançar foco nos interesses recíprocos que uniram os militares a Vargas, e na atuação que tiveram no silencioso golpe de 37. Para resumir, o presidente precisava das Forças Armadas, especialmente do Exército, para pôr este projeto de pé. Estas, por seu lado, desorganizadas e fragmentadas, não conseguiam se apresentar como um ator político de peso. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, uma das táticas usadas pelos aliados militares de Vargas foram os expurgos, que acabaram por permitir que a facção surgida em 1930, liderada pelos generais Góis Monteiro e Eurico Dutra, se tornasse dominante, possibilitando a unificação da instituição do ponto de vista político e ideológico.

O teste desta aliança se daria nas eleições presidenciais diretas previstas para janeiro de 1938. Pautadas pelos padrões políticos da Primeira República, as chapas se formaram com base em forças políticas regionais, na sua forma tradicional, em torno de duas candidaturas: de um lado, a do paulista Armando de Sales Oliveira; de outro, a do paraibano José Américo de Almeida. Vargas jogou com cartas escondidas na manga. Embora tenha estimulado o lançamento da candidatura José Américo, já teria em mãos a futura Constituição de 1937, redigida por Francisco Campos.

Restava articular o golpe.  Com os governadores, a tarefa coube a Negrão de Lima. Para consolidar o esquema militar, Góis foi nomeado para a chefia do Estado-Maior e o general Dutra para o Ministério da Guerra. Como quem sabe faz a hora, não espera acontecer, em 30 de setembro, foi anunciada pelo ministro da Guerra a “descoberta” do Plano Cohen, que previa a derrubada de Vargas e a instauração do regime comunista no Brasil. As garantias constitucionais foram suspensas imediatamente, e  a 10 de novembro, sem provocar maiores resistências, foi fechado o Congresso, outorgada a nova Constituição e proclamado o Estado Novo. Como Benedito Valadares (então governador de Minas) diria mais tarde: “É interessante observar o ser possível fazer-se uma revolução (sic) às claras, sem o povo desconfiar”.

Em 1987, durante o governo Sarney, foi realizado um seminário no IFCS/UFRJ, sobre os 50 anos do Estado Novo. O que estava, então, nos corações e nas mentes dos intelectuais era a possibilidade de o presidente da chamada Nova República tentar repetir 37, apoiado pelo general Leônidas Pires, ministro do Exército. Passado que ficaria no passado, restando apenas nos livros de história? Ledo engano. Afinal, quem tem medo de 37?

 

 Marly Motta é historiadora; professora aposentada da FGV-RJ. 

 

 

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