Vida dupla

Por Miriam Waidenfeld Chaves

 

Flávia já foi Ana e Ana já foi Flavia em Codinome Ana. Habitaram o mesmo corpo quando a ditadura corria solta pelo país, pois Flávia diferentemente de Vera, sua melhor amiga, não virou hippie, preferiu  lutar pela democracia.

Naquela época fez alguns cursos sobre Lenin e Trotsky, se reuniu em várias células e namorou três companheiros, cujos nomes verdadeiros nunca soube. Lembra-se especialmente de Marcos.

Vivia uma vida dupla. Inclusive, chegou até a acreditar que nunca mais encontraria Flávia dentro de si, apenas Ana, mais sonsa e cismada do que ela própria.

Mas os anos de 1980 chegaram e o Brasil respirou aliviado. O partido de Ana saiu da clandestinidade e seus companheiros se espalharam por aí.

Flávia esqueceu-se daqueles tempos. Esqueceu-se de Ana. Foi viver a sua vida. A vida de Flávia:

Hoje, psicóloga, casada com um endócrino, dois filhos, moradora do Humaitá, Flávia vive uma vidinha bem classe média. Apesar de trabalhar muito, assim como Jairo, seu marido, gosta de ir para Visconde de Mauá com a família e à Europa uma vez por ano.

Daquele tempo guarda apenas uma birra contra os EUA. Seus filhos que o digam, pois por mais que tenham lhe implorado, sempre se recusou a levá-los à Disney. Diz que é coisa de deslumbrado, de morador da Barra e de criança que não brinca com a terra.

Fora uns pequenos tiques esquerdistas, Flávia encaretou de vez. Até esqueceu-se de que um dia fora Ana:

– Aqui não mora nenhuma Ana, não. É engano.

Ao desligar o telefone, Flávia vai displicente até a cozinha, pega uma caneca de café, olha a mata que se estende no alto da Macedo Sobrinho e começa a preparar a sua aula sobre “O mecanismo psíquico do esquecimento”, de Freud.

Ao ler O fenômeno do esquecimento….já foi sem dúvida experimentado por qualquer um em si próprio ou observado em outras pessoas. Afeta em particular, o uso dos nomes próprios – nomina própria – e se manifesta da seguinte maneira…, Flávia tem um troço.

Levanta rápido, respira fundo, olha para o verde da mata procurando tranquilidade e tranca-se no quarto para que filhos e  empregada não reparem a sua aflição.

Ali escondida como se estivesse em um aparelho, Ana toma forma em Flávia novamente. Como pôde se esquecer daquela voz sussurrando em seu ouvido palavras nunca mais ouvidas?

Como não sacou que era Marcos procurando Ana? A Ana que habitou em si. A Ana que esquecera de vez.

A partir desse dia, filhos, marido, empregada, alunos e colegas de trabalho  perceberam a impaciência e ansiedade de Flávia. Principalmente Zezé notou algo estranho, pois quando Flávia chegava da rua logo perguntava:

– Alguém procurando por Ana ligou outra vez? E emendava: – Se ligar, me passa o telefone.

Uma semana depois, Flávia, lendo um texto sobre Lacan, corre para atender o telefone tocando. Diz com uma voz meio hesitante, torcendo para ser Marcos:

– Alô?

Do outro lado um silêncio. De repente, explode:

– Ana?

– Eu. Marcos?

– Sim, sou eu. Quanto tempo.  Te liguei semana passada.

– É,  na hora não me toquei, já faz tanto tempo…aí, já era tarde..

 

Marcaram de se encontrar no velho botequim na Lapa, onde, lá no fundo do bar, ficaram apenas uma vez, bebericando uma caipirinha entre beijos, abraços e discussões sobre a conjuntura  nacional.

De repente, Flávia se esqueceu da vida, dos compromissos familiares e profissionais. Ficou apenas imaginando que roupa iria vestir e como estaria Marcos. Hoje Henrique.

Apesar dos salamaleques da primeira hora do reencontro, a formalidade foi logo quebrada. No duplo sentido. Falaram da vida e da política. Assunto que ainda empolgava Henrique e Flávia, só um pouquinho. Mas ambos concordaram que o sindicalista do ABC era supimpa.

Henrique contou que esse tempo todo se refugiou na roça e que estava ali no Rio de Janeiro para um encontro de trabalho. Disse também que, depois de várias tentativas, descobriu seu telefone e resolveu ligar.

Flávia percebeu que Henrique, apesar de mais velho, continuava boa pinta, talvez seja a vida no campo, pensou. E pelo entusiasmo de Henrique, Flávia concluiu que também o havia agradado.

Um papo longuíssimo que só foi terminar com Flávia dizendo que precisava ir à Faculdade. Trocaram telefones e beijinhos.

A partir daí, apenas São Sebastião, padroeiro da cidade e santo de devoção de Seu Antonio do botequim, passou a testemunhar as conversas, beijos e amassos dessa dupla.

Com Henrique já morando no Rio de Janeiro, em um apartamento no Flamengo, os encontros passaram da Lapa para a Rua Paissandu, e São Sebastião ficou sem saber o final dessa história.

Sabe-se apenas que Flávia resgatou Ana de suas entranhas e se tornou de novo sonsa e ressabiada, para assim poder driblar as dificuldades de sua vida dupla outra vez.

 

Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ.

 

Resposta de 0

  1. Muito bom! Li como quem vê um filme passando na minha frente!
    E agora estou aqui, como São Sebastião, doida pra saber o que anda acontecendo com esses dois…

  2. Poxa até que fims outras informações que estava
    encontrando não tinha nada a ver com o assunto.
    Infelizmente são poucos os sites no qual encontrei o que
    procurava e bem escrito a informação correta. Obrigado e
    compartilhado nas minhas redes sociais com alguns colegas.

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