Por Júlio Saraiva (in memorian)
Assassinaram o Bar do Léo, ali na rua Aurora, que um dia foi o coração da Boca do Lixo de São Paulo. Reduto de malandros como Joaquim Pereira Costa, o Quinzinho; Hiroíto de Moraes Joanides; Mauro da Silva, o Xodó. Todos eram monarcas de um mesmo reino. De vez em quando se desentendiam. Mas, no final, acabava tudo certo.
Eles não frequentavam o Bar do Léo, que, apesar da localização, sempre foi mais família. Havia até algumas regras impostas aos frequentadores. Casal se amassar, era proibido. Batucada na mesa, nem pensar. Pedir o chope, tirado em serpentina de louça, sem colarinho, uma heresia. Se qualquer uma dessas regras fosse quebrada, o freguês era convidado a sair, sem pagar a conta, com a recomendação de não voltar nunca mais.
Mas e daí que assassinaram o Bar do Léo? Na Boca do Lixo, que virou cracolândia, assassinaram tantos outros lugares. O Tabu, por exemplo.
Era um restaurante imundo, frequentado por jornalistas, policiais, rufiões, prostitutas e de vez em quando até gente de bem.
Foi nessa mesma rua Aurora que Paulo Vanzolini compôs sua canção mais famosa, não a melhor, segundo o próprio, Ronda. O cenário é a avenida São João. Mas Vanzolini me contou que Ronda nasceu na rua Aurora, quando ele tinha 18 anos, servia o Exército e fazia patrulhamento na zona do baixo meretrício. Isto foi no início da década de 1950. E a primeira gravação de Ronda coube a Inezita Barroso. Ronda, hoje gravada até em japonês, foi apenas o lado B do 78 rotações de Inesita, onde pontificava a Marvada Pinga.
Na São João com a Ipiranga, também assassinaram o Bar do Jeca, frequentado por Mário de Andrade. E depois, bem depois, por dois baianos, então ilustres desconhecidos, que foram morar ali perto, na rua São Luís – Caetano Veloso e Gilberto Gil. O famoso cruzamento da São João com a Ipiranga inspiraria, décadas depois, Caetano Veloso a compor Sampa, um meio plágio de Ronda. Caetano disse ser uma homenagem, mas Vanzolini nunca engoliu.
O Paribar, perto da 7 de Abril, onde o escritor e crítico Sérgio Milliet, recebia os amigos, como se fosse uma espécie de escritório, também dançou. Por ali, também iam bebericar outros famosos, como o romancista e contista Marcos Rey, que se inspirou no estabelecimento, que acolhia muitos publicitários, para escrever um dos seus mais belos contos, O Bar dos Cento e Tantos Dias.
Na 7 de Abril, reduto dos Diários Associados, tinha o Costa do Sol, outro finado. Para a minha sorte e de tantos outros colegas dos Diários, que esqueceram por lá seus penduras. Descanse em paz, velho Costa!
Acabou o Parreirinha, na General Jardim, ponto de Adoniran Barbosa, que tinha mesa cativa e almoçava, de graça, todos os dias. Na Ipiranga com a Consolação, teve fim o Redondo, quase em frente ao Teatro de Arena, frequentado por Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos – sempre fiel, embora não fosse de beber- e o pesquisador musical José Ramos Tinhorão.
Não vou falar no Riviera, na Consolação com a Paulista, porque nas vezes em que fui lá, só encontrei gente chata, a começar pelo dono. Então, volto ao Bar do Léo. E não vou dizer que lamento o seu fechamento, não. São Paulo é isso mesmo. Uma bosta de cidade, que adora assassinar sua história. De que adianta esbravejar?! Fecham o Léo, abrem um McDonald’s. A gente passa e a vida continua.
Bem feito. No fundo, no fundo, eu acho bem feito. Bem feito pra São Paulo. Boemia acabou faz tempo. O que existe hoje é balada. E balada é aquele negócio horroroso, onde um bando de idiotas passa horas nas mesas, fazendo batucada, bebendo cerveja quente e não comendo ninguém.
Mais uma vez, bem feito pra São Paulo. Eu mesmo quase não saio mais de casa. Não vejo graça na noite. Não vejo graça em ninguém da noite. Sou coisa do passado. Minha barba está branca. E eu vou ficando por aqui. Mas bem que eu gostaria de descer agora, ir até ao Léo e tomar o último chope. Como se fosse um sacramento.
Uma extrema-unção pra minha boemia agonizante. Tchau, Léo. Agradecido pelos porres. Pelo péssimo/excelente atendimento do Luís, o garçom mais malcriado de São Paulo. E por isso mesmo, o mais querido. Tchau, cacete! Chega!
Júlio Saraiva, poeta e jornalista falecido, em São Paulo, aos 57 anos. Ele teve passagens pelos jornais Notícias Populares, Diário Popular, Diário da Noite e Radiobrás, cobrindo especialmente grandes casos policiais.
Assim ele mesmo se descrevia em seu blog; “Sou um sujeito comum, chamado Júlio Saraiva. Nasci em São Paulo no dia 6 de agosto, ano da graça de 1956, quarta-feira, nove e quinze da manhã. Amo o Rio de Janeiro. Sofro de preguiça. Gosto de beber, mas só em botequins ordinários. Nunca fiz parte de nenhum grupo literário, também não fui talento precoce. Não falo inglês, detesto hambúrger e coca-cola. Nunca entrei num McDonald’s. Sou jornalista de carreira, mais por falta de opção do que vocação. Casei algumas vezes e acho que fui feliz – elas não sei se foram. Escrevo livros, mas não me lembro de ter plantado árvore. Filhos não tive. Sou malthusiano. Adoro o que escrevo. Do contrário, não seria idiota em publicar. Nada mais”.