Luis Otavio Barreto
Estou escrevendo sobre a crise funerária ocorrida no Rio de Janeiro do início do século 20, em decorrência da greve dos coveiros e da gripe espanhola. E agora, quero dividir com você o prelúdio do que será o meu artigo. Imagine que há cem anos, dentro de caixões, corpos se acumulavam nas aleias do cemitério do Caju, no cais do porto, região central do Rio. O cheiro, naquelas bandas, era pavoroso. Os coveiros haviam instalado uma greve (breve, vocês poderão ler mais sobre, naquele artigo de que falei.) e os serviços funerários colapsaram nem no meio de uma crise sanitária de proporções pandêmicas. (1) Saltemos 100 anos na história; cá estamos às vésperas de um novo colapso funerário, parece loucura né?! Até o momento em que escrevo, não há indícios de uma greve por parte dos bravos coveiros, do século 21. O que há é a falta, absurda, de quaisquer políticas efetivas de combate ao COVID-19, por parte do governo federal.
Voltemos ao Rio dos anos de 1918. Fui um obsessivo leitor de Nelson Rodrigues, do cronista, jornalista e dramaturgo e falo em Nelson por que, em minhas pesquisas, descobri que em um texto de Mary Del Priore, em O Globo, numa edição de março de 2020, a historiadora cita Nelson. Vejamos:
(…) Rapidamente, com a velocidade das mortes, a cidade parou. Comércio, escolas, igrejas, tudo fechado. Ela ceifava tão rápido que não havia tempo de enterrar os cadáveres. Contou Nelson Rodrigues que, tossindo, as pessoas caíam na calçada, com a cara enfiada no bueiro. Que passava o caminhão de limpeza recolhendo os corpos. Que de dentro das casas se ouvia: “Aqui tem um! Aqui tem um!” Famintos aproveitavam para atacar armazéns. A classe média tremia entre a doença e o caos social. Que fazer? (…) (2)
Em outros estados, como Alagoas, um cemitério foi criado para atender as demandas da gripe espanhola e, cem anos depois, serve a causa tétrica do COVID-19, ah, isto também acontece no Rio, com a diferença de que o São Francisco Xavier (Caju) já existia desde o século 19. Em Manaus, desbastou-se uma área imensa, para a ampliação do cemitério e, além disso, a prefeitura abriu covas coletivas, batizadas de “trincheiras”. No Rio, milhares de novas covas e estruturas com oito andares para sepultamentos tipo “gaveta” foram construídas; já ocupadas. (3) Os dois últimos andares foram destinados a sepultamentos sociais que, desde março de 2020, por decreto do ex-prefeito Marcello Crivella, passaram a ser gratuitos, para famílias com renda de até 3 salários mínimos. A prefeitura também dispõe de um serviço fúnebre bastante econômico; R$ 546,00, disponível para qualquer cidadão. (4)
Há um ano, 12 mil foram construídas e entregues, quer dizer, em março de 2020. Na ocasião, a Reviver, concessionário que administra alguns cemitérios cariocas, esperava a liberação da prefeitura para a construção de mais 28 mil sepulturas.Isto sem contar os jazigos, as covas rasas e as cremações. É conveniente considerar o pavoroso aumento de óbitos desde então e traçar um comparativo, assim chegaremos a projeção do colapso. Há que se considerar, ainda, que para a exumação, em jazigos, gavetas e covas, há um tempo mínimo: 03 anos.
Miguel Nicolelis, médico e neurocientista, disse, em entrevista à CNN Brasil:
(…) O Brasil não tem perspectivas concretas de sair dessa crise em 2021. Se o sistema de saúde brasileiro colapsar como um todo, as pessoas não vão ter para onde ir, vão começar a morrer nas suas casas, nas ruas, na porta dos hospitais. E aí o Brasil vai ter um colapso funerário, onde você não dá conta dos óbitos do país, não consegue manejar o volume de vítimas. Começa a ter infecções secundárias, contaminação de alimentos e do lençol freático. Você perde o controle do país” (…) (5)
Lourival Panhozzi, que é diretor da ABREDIF, Associação Brasileira de Empresas e Diretores do Setor Funerário, disse, recentemente, que o colapso não é uma realidade, mas uma possibilidade e teme por isso. Há que se considerar, porém, que até a data da conversa, Panhozzi considerava um número de 300 mil mortes por COVID-19. Número que já foi ultrapassado. Na live de ontem, o doutor em Microbiologia, Atila Iamarino considerou a hipótese de cerca de mais 200 mil mortes pelos próximos 8 meses, ou seja, até o fim deste ano de 2021. Compreende, caro leitor, a gravidade da situação?!
A despeito dos ritos, do encurtamento das cerimônias, da proibição de velórios, e das ações do setor, que se preparam para sepultamentos noite a dentro, instalação de torres de iluminação e aumento de estoque de urnas, a situação é pavorosa! E o colapso vivido há cem anos pode sim se repetir. E não nos esqueçamos das infecções secundárias. Amigo leitor, preciso encerrar. Me estendi! Paciência! Agradeço sua leitura até aqui. Permita-me encerrar com uma frase que julgo ser conveniente, ela é de Karl Marx; A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Nunca foi uma gripezinha! Nunca!
Notas do Autor
(1) https://medium.com/@podcastmaishistoriaporfavor/pararam-de-enterrar-os-mortos-e445c0eeb426 Acesso em 31 de março de 2021
(2) https://oglobo.globo.com/cultura/gripe-espanhola-menosprezada-em-1918-epidemia-parou-rio-matou-presidente-24337334 Acesso em 31 de março de 2021.
(3)https://www.brasildefato.com.br/2020/05/08/saiba-a-situacao-do-sistema-funerario-das-quatro-capitais-com-mais-casos-de-covid-19 Acesso em 01 de abril de 2021.
(4)https://prefeitura.rio/infraestrutura/crivella-anuncia-gratuidade-em-sepultamentos-para-familias-de-baixa-renda-que-ganham-ate-tres-salarios-minimos/ Acesso em 01 de abril de 2021.
(5) https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/03/19/Como-a-pandemia-sobrecarrega-o-setor-funer%C3%A1rio-no-Brasil Acesso em 01 de abril de 2021.
Foto: Caixões chegando do interior e sendo carregados na Gare da Central em autos das Obras Públicas que os conduzem para a Santa Casa
Fonte: Revistas O Malho, Fon-Fon e Careta (1918)