Ofensores versus guardiões

Por Virgílio Almansur

Você não pode se contrapor a um protocolo que lhe impõe o uso de uma medicação. Afinal, ela vem de um laboratório ungido nas forças armadas e tem, no proselitismo, aquele embalo que acompanha a fantasia de uma incolumidade que todos atestamos nas mortes provocadas em porões assassinos da ditadura. Se você se negar, encontrará um guardião dessa “fé” que deve ser inabalável. Resistindo, você será um ofensor.

Parece mentira! Mas assistimos inertes essas ocorrências que, a bem da verdade, tiveram algum êxito exatamente pela cumplicidade que fragiliza a classe que mais deveria ter autonomia em seus atos: a do médico.

Outrora assistimos a um Amílcar Lobo numa casa sombria em Petrópolis: a Casa da Morte. Lá, o médico, tenente do inglório exército, medicava seus pacientes para suportarem as torturas, denúncia contida em depoimentos de Etiene Romeu, presa 96 dias na casa horrenda no ano de 1971.

Depois de sua morte, em 1997, a viúva de Lobo, Maria Helena Gomes de Souza, publicou um depoimento em 2006 na revista Época em que afirmava que, “apesar de ter sido um médico militar obrigado a prestar serviço para o qual era designado sob pena de prisão, de ter comentado com companheiros de profissão o que fazia e seus receios recebendo de volta a omissão, e mesmo assim ter contado tudo que sabia”, seu marido havia sido, ao final, identificado pela sociedade como o único culpado, o “bode expiatório”dos males da repressão. Falácia!

Se havia colegas funcionando como guardiões — quê estupidez! —, guardavam algo que transcendia a própria prática. Numa hierarquia nada dissimulada, preteriram aquela que deveriam honrar: a de servir ao paciente.

Bastante interessante as analogias que os porões trouxeram a esses eventos em torno da cloroquina. Até onde pudemos constatar, havia um Harry Shibata, o médico-legista acusado de assinar laudos necroscópicos falsos de presos políticos assassinados pela ditadura (seu nome aparece inúmeras vezes no “Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964”, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos).

Ascese ao desejo… Ética corresponderia não ceder ao/do desejo. Comprometimento alheio à prática prometida em juramento, carrega um comércio espúrio. Talvez uma necessidade imperiosa. O tempo em que muitas mortes poderiam ser evitadas esteve nesse interjogo guardado de ofensas… Ofendeu-se a primazia de uma ética que a estética última exigiu com a mão no peito cantando louvor… Uma (est)ÉTICA sombria…

Em pleno século XXI nos deixamos envolver por práticas medievalescas num ritual dantesco em que vidas deveriam ser assistidas, mas estiveram submetidas a um outro princípio — bastante distantes da coerência médica.

Mas deve haver certa coerência nessas ocorrências. Há que se encontrar uma lógica para a adoção de princípios que aviltem o humano, desinviduando o sujeiro até sua desumanização.

O horror que envolveu o nazismo — e as atrocidades do holocausto —, teve como meta uma redução racial. A estética ariana deveria ser primaz! Aqui, entre nós, a estética militaresca está e vem sendo uma exigência que nos acompanha em passeatas desde 15/16, com ênfase entre os adeptos do ogro arruaceiro que nos desgoverna e envergonha…

O idoso, normalmente humilhado, por vezes pouco responsivo às práticas terapêuticas e a caminho da ridicularização, é presa fácil ao se assujeitar às atrocidades principalmente daqueles, quase capitães-do-mato, que estão submetidos hieraquicamente àqueles que detém poder e se veem com a capacidade de promover “inimigos”.

A lógica é desumanizadora e, assim sendo, antecedida por algo mais cruel: o algoz já está sob investimento cruel onde não tem mais individualidade! É guardião e não indivíduo. Faz com muita simplicidade esse bypass de seu algoz-chefe até o não-indivíduo que é “capturado” para o exercício das atrocidades que ouvimos. Os marcadores de identidade, principalmente dos inúmeros idosos em CTI, não se fazem valer.

É lógica de guerra! A mesma lógica exercida pelas ffaa na criação de seus inimigos, uma inspiração para os porões torturarem e nossos médicos copiarem.

Trata-se de triste realidade em que a desinviduação seguida de desumanização estimula a quebra mandamental do “não matarás”, ficando o tabu suspenso, uma vez que as vítimas deixaram de ser humanas. Poderão ser mortas!

Os tais médicos guardiões deixaram seus “eus”. Deixando de ser eu, o profissional incorpora naturalmente um nós, fazendo parte de um coletivo que cria a ilusão — até sensação! — de ser livre, isento de responsabilidades…

Virgilio Almansur é médico, advogado e escritor.

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