Os focos de calor foram tantos que 34 cidades foram declaradas em alerta máximo na rica região de Ribeirão Preto, no interior do estado de São Paulo, na sexta-feira de 23 de agosto. As queimadas consumiam principalmente os canaviais secos e, pela primeira vez, o fogo se aproximou de bairros ricos – moradores de um condomínio de luxo de Bonfim Paulista, município vizinho a Ribeirão Preto, tiveram que abandonar suas casas.
Espera-se que a cobertura da imprensa ao fenômeno, provocado em sua essência pelo desequilíbrio climático que mais uma vez, como no Rio Grande do Sul, deixou a zona rural para chegar às cidades e às classes médias e altas, consiga ajudar a conscientizar o país sobre a necessidade de se dar à emergência climática a prioridade que tem que ter na agenda não só do nosso governo, mas na da governança mundial. Cada vez mais fenômenos inesperados, como o das queimadas do final de semana – foram 1,2 mil focos de fogo em um único dia no estado de São Paulo –, vão ocorrer nos surpreendendo, colocando em risco a saúde de nossa população, nossos biomas e nosso futuro.
Senão, vejamos. Só neste ano tivemos quatro alertas. Todos fora da curva. As enchentes do Rio Grande do Sul e os focos de calor na Amazônia, no Pantanal, no cerrado e, agora, no interior do estado de São Paulo. No caso das queimadas, para agravar, há indícios de ação criminosa tanto na Amazônia, como no Pantanal e em São Paulo. A PF já abriu mais de 30 inquéritos.
Em decorrência dos desastres climáticos deste ano aconteceram várias mortes, centenas de famílias perderam suas casas, muitas pessoas – adultos e crianças – ficaram doentes, e foram registrados prejuízos ainda não calculados a serem minimizados pelos investimentos públicos. E pior: parte disso poderia ter sido evitada se o governo federal anterior não tivesse feito negligenciado a crise climática, incentivando, com a flexibilização da legislação e da fiscalização, o negacionismo de parte do agronegócio para desmatar e devastar. E se governos estaduais não tivessem colocado a especulação imobiliária acima do desenvolvimento sustentável de seus territórios.
Como consequência, vivemos em 2024 um Rio Grande do Sul devastado por enchentes com um rastro de dor e morte – milhares de desabrigados e 107 mortos. Segundo cálculos da Fiesp, o impacto negativo da tragédia no PIB deste ano será de R$ 39,4 bilhões. Para apoiar os gaúchos, o governo federal já investiu 0,5% do PIB: R$ 80,938 bilhões em diversas atividades em setores distintos e R$ 23 bilhões relativos à suspensão do pagamento da dívida (e de seus juros e correção) por 36 meses.
As águas que invadiram o Sul têm, como contrapeso, a seca que avança pela Amazônia. Começou em 2023 e continuou este ano, antecipando o verão. Como resultado, além de viver a pior seca em 40 anos, a Amazônia, de janeiro a meados de agosto, já tinha enfrentado mais de 26 mil focos de incêndio, número superior ao pico registrado 20 anos atrás. Boa parte disso é responsabilidade de uma fatia do agronegócio, aquela parte que acha que emergência climática é fake news, que faz queimada para avançar a fronteira agrícola e joga veneno como ferramenta de produtividade. Infelizmente, esse tipo de mentalidade ainda contamina um contingente expressivo do setor
Segundo os dados do INPE, o estado da região Norte com o maior número de focos de incêndio no mês de agosto é o Mato Grosso, que responde por 28,6% do total. Em seguida, vem o Pará, com 27,8%; e o Amazonas, com 22,3%. Somados, os três estados representam mais de ¾ do total dos focos de calor.
Na esteira da Amazônia vem o Pantanal. Também lá, por conta da seca, o “verão” chegou fora do tempo. No Pantanal, janeiro a meados de junho, foram detectados mais de 3.200 focos de queimadas, um número 22 vezes maior que o registrado no mesmo período no ano passado (+2.134%). É o maior número da série histórica do INPE, iniciada em 1998.
Até o cerrado
De acordo com especialistas, o aumento das queimadas no Pantanal, em 2024, está associado principalmente à crise climática, já que o bioma vive uma seca severa. Entretanto, as queimadas no Pantanal também têm relação com a ação humana no cerrado, já que os biomas estão interconectados. O desmatamento no planalto do cerrado, onde estão as cabeceiras dos rios que abastecem a planície pantaneira, contribui para a seca extrema no Pantanal.
No cerrado, entre janeiro e meados de junho, foram detectados mais de 12 mil focos de queimadas, um aumento de 32% em comparação ao mesmo período em 2023. É também o maior número da série histórica iniciada em 1998. No primeiro semestre deste ano, 53,3% das queimadas registradas no cerrado ocorreram nos quatro estados do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), onde se situa atualmente a principal fronteira de expansão agrícola do país. E expansão de fronteira agrícola, no Brasil, infelizmente vem sempre associada a desmatamento.
Desde que iniciou seu terceiro governo, Lula, com Marina Silva à frente do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), vem trabalhando para remontar as estruturas de fiscalização e prevenção de acidentes climáticos que o governo anterior destruiu. Não é tarefa fácil, mas os números já revelam uma queda significativa nas taxas de desmatamento.
Na área da regulação conseguiu-se um importante avanço com a aprovação, pelo Senado, da Política Nacional de Manejo do Fogo (Lei 14.944, de 31/7/2024). O projeto de lei, elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente, foi apresentado à Câmara dos Deputados, em 2018, um ano após a queimada que devastou a Chapada dos Veadeiros e aprovado. Mas o PL travou no Senado apesar do aumento dos focos de incêndio ano a ano. As imagens do Pantanal ardendo nas queimadas de 2024 foram fortes o suficiente para mobilizar os políticos da região, de diferentes partidos, que ajudaram o governo a negociar a aprovação do texto, sem alterações.
Pela Lei, a Política Nacional de Manejo do Fogo tem, como estrutura, um comitê nacional, um centro de operações e um sistema integrado de informações, o Sisfogo. Também serão desenvolvidos planos de manejo do fogo, políticas de educação ambiental e um programa de brigadistas, que vão atuar não só no combate aos focos de calor, mas na prevenção de queimadas, pois uma parte significativa delas é provocada por ação humana, ou acidental, ou criminosa.
A expectativa é de que as medidas contidas na Política Nacional de Manejo do Fogo ajudem, de imediato, a mitigar o processo de aumento contínuo dos focos de calor que queimam nossos biomas. Como o desequilíbrio ambiental é um dado com o qual temos que conviver, é preciso rigor no combate aos que insistem em acentuar esse desequilíbrio, provocando desmatamento, o mesmo rigor que as autoridades aplicam e devem aplicar aos que criminosamente iniciam as queimadas.
José Dirceu Advogado e militante político, natural de Passa Quatro (MG), Dirceu iniciou sua militância política durante os anos de ditadura militar no Brasil, engajando-se no movimento estudantil. Foi presidente nacional do PT, deputado estadual por São Paulo de 1987 a 1991, deputado federal por São Paulo três vezes entre 1991 e 2005 e ministro-chefe da Casa Civil durante o primeiro governo Lula, em