Por Bruno Freixo
Dados de 2024 da Oxfam apontam que 1% da população brasileira concentra quase 70% de toda a riqueza do país. São bilionários.
O camarada fez 40 anos, era concursado da BR Distribuidora com salário de 18 mil. Quando a empresa foi privatizada em 2019, tomou um pé na bunda, pegou o dinheiro da indenização e começou a vender bolo com a esposa.
Veio a pandemia, teve que parar de vender bolo e usou o dinheiro para sobreviver. Hoje, com 46, está desempregado, faz bico como Uber e já enviou currículo até para trabalhar como porteiro, pra ganhar um salário mínimo, pois sua idade também virou um empecilho no mercado de trabalho.
Quando uma estatal é privatizada, essa realidade acaba sendo comum. Nós, da geração Y, filhos do Consenso de Washington, crescemos ouvindo em TVs e rádios que o serviço público não presta. E isso é não apenas verdade, como também proposital.
O sucateamento de estatais sempre foi um projeto político do país, sobretudo a partir dos anos 1990, em que os acordos econômicos Brasil-Estados Unidos com o Banco Mundial visavam desestatizações em massa em troca da transferência de riquezas ao setor privado, dependência do capital estrangeiro e a consequente precarização da mão de obra, tudo para atender a financeirização e a desregulamentação total da economia através da captura do Estado.
O resultado disso, na prática, é um grande volume de mão de obra barata. O papel do Estado é atuar nos projetos do Congresso que garantam a flexibilização das leis trabalhistas e austeridade fiscal.
O primeiro é a garantia de maior lucro aos setores empresariais e, o segundo, reduz propositalmente investimentos nas estatais, visando seu sucateamento como justificativa para as privatizações.
Isso significa maior concentração de renda nas mãos de poucas pessoas, que é o principal fator da pobreza e, consequentemente, um estimulador da violência urbana.
Dados de 2024 da Oxfam apontam que 1% da população brasileira concentra quase 70% de toda a riqueza do país. São bilionários.
Bilionários não mantêm suas riquezas trabalhando, mas vivem do rentismo, da não tributação de suas fortunas, das grandes remessas de dólares a paraísos fiscais, das aquisições e fusões empresariais e da especulação no mercado que conseguem fazendo lobby na Bolsa e com o Estado. E também, não por menos, do grande volume de mão de obra barata em seus conglomerados.
Para que isso tudo passe “despercebido” pelo povo, é necessário convencimento de massas. E para haver convencimento de massas é preciso muita publicidade e muita domesticação, que vêm através de meios de comunicação, no trabalho e até em igrejas.
O pobre é aculturado a demonizar a ideia de ser empregado e romantizar o objetivo de se tornar “seu próprio patrão”.
Programas de TV como “Pequenas Empresas, Grandes Negócios”, “O Aprendiz” e outros realities do mundo corporativo sempre moldaram na figura do executivo o fetiche das camadas mais populares em corporificar a ascensão de classe, a tão desejada mobilidade social.
No imaginário popular, a ideia de que a riqueza vem pelo trabalho tem a ver com a fantasia calvinista de que o acúmulo de capital é uma resposta positiva de Deus pelo esforço individual.
A pobreza, nesse caso, não é mais vista como fruto de uma ampla desigualdade social, mas culpa do próprio indivíduo que não se esforçou o suficiente para sair daquela condição.
Quando um engenheiro com doutorado reclama do seu baixo salário de 4 mil reais mensais e o empregador o demite dizendo: “Não quer? Tem quem queira”, o pobre despolitizado, que não tem a menor ideia de sua estratificação social, entra em defesa do empregador como resultado de sua própria domesticação, reforçando no senso comum a noção de que a precarização da mão de obra nas relações de produção é um resultado individual, fruto da “escolha” de quem “não quer trabalhar”, isentando o empregador e, por consequência, o sistema econômico em que ambos estão inseridos.
Um engenheiro com doutorado, concursado da Petrobrás até a década passada, ganhava um salário inicial de aproximadamente 15 mil mensais.
Nada mais justo, pois o profissional passou pelo menos 10 anos em uma universidade se qualificando para isso. Em uma empresa privatizada, seu salário cai pela metade e seus benefícios são cortados. Isso garante maiores dividendos aos acionistas majoritários.
Mas por que não há uma mobilização de trabalhadores para reivindicar melhores condições?
Porque o senso comum foi forjado para fazer o empregado dar razão irrestrita ao empregador. Porque o senso comum ridicularizou a luta por direitos e domesticou o trabalhador a demonizar o serviço público.
Porque a igreja convenceu a massa trabalhadora de que ser workaholic é o caminho para a riqueza, elevando o excesso de trabalho e o lucro a uma dimensão sagrada. A ética calvinista como mola propulsora do Burnout…
O alto índice de pejotização da classe trabalhadora – pra cortar custos ao empresário – significa maior informalidade no mercado e prejuízo não apenas ao empregado, que deixa de ter seus direitos trabalhistas, mas também ao próprio Estado, que deixa de arrecadar impostos.
É uma transferência de renda do Estado para o setor privado. Quanto mais “empreendedores” e pejotas home office, mais dinheiro aos empregadores.
O Estado aumenta o lucro de empresários e, o trabalhador despolitizado, mergulha na fantasia do “patrão de si mesmo” enquanto trabalha por mais tempo e empobrece ainda mais.
Nessa distopia pós-neoliberal, a uberização dos empregos foi o que restou à classe trabalhadora. O Consenso de Washington produziu no Brasil funcionários públicos a favor das privatizações, classe trabalhadora defendendo a própria precarização e, concurseiros, torcendo pelo enxugamento do Estado.
O neoliberalismo trouxe uma racionalidade irracional ao senso comum, a desregulamentação irrestrita de mercado e a regulação mercadológica da desumanidade.
O que vem depois do absurdo?
É possível não privatizar a última trombeta do Apocalipse?”

Bruno Freixo é historiador e Pesquisador do fenômeno evangélico no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (Labô/PUC-SP)










