Por Sonia Castro Lopes
Se vivo estivesse, Darcy Ribeiro completaria hoje (26) cem anos. Diante dos retrocessos que caracterizam a educação brasileira neste momento só nos resta lembrar com nostalgia de um passado não tão distante quando tivemos à frente do projeto educacional do governo Leonel Brizola no Rio de Janeiro ninguém menos que Darcy Ribeiro.
Admirador de Darcy Ribeiro, Zuenir Ventura escreveu uma crônica emocionada por ocasião do falecimento do amigo. A citação é longa, mas necessária, pois ninguém definiu com mais propriedade o sentimento de perda que o país experimentou com a partida do grande brasileiro. “Que toquem os tambores de todas as tribos – do campo e das cidades. Morreu o grande pajé, foi embora o nosso bom selvagem, subiu aos céus o nosso feiticeiro. (…) Todo mundo quando morre faz falta para alguém, mas Darcy Ribeiro vai fazer falta para todo mundo – afetos e desafetos – em todas as aldeias: locais e globais. As mulheres, não só as que ele amou e que o amaram mas até as que ele não teve tempo de amar, estão inconsoláveis. As crianças ficarão órfãs; os índios, desvalidos; os caboclos, abandonados; as cabeças, sem idéias; o humor, sem graça, e Brasília, mais pobre ainda” (1).
Intelectual brilhante e irreverente, Darcy nasceu a 26 de outubro de 1922, em Montes Claros, Minas Gerais. Mineiro fora dos padrões, indisciplinado, como o qualificou Helena Bomeny (2), Darcy tinha “mania de salvar o Brasil” e, para atingir seu objetivo, valeu-se de uma militância engajada, intensa e apaixonada. Filho de professora primária e órfão de pai aos três anos, Darcy nasceu no emblemático 1922 (assim como Leonel Brizola), marcado pela revolta dos tenentes em oposição às práticas da “velha” república, pela revolução cultural da Semana de Arte Moderna e fundação do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Aos 17 anos, seguiu para Belo Horizonte e, para agradar a mãe, ingressou na Faculdade de Medicina, curso que abandonou em 1943, após ter sofrido três reprovações porque, ao invés de estudar anatomia, dedicava-se à leitura de Engels nos cursos de filosofia, onde costumava “matar” as aulas de medicina.
De Belo Horizonte seguiu para São Paulo onde Donald Pierson (3) lhe conseguiu uma bolsa de estudos na Escola Livre de Sociologia e Política. Nessa cidade exerceu o ativismo político convivendo, entre outros, com Caio Prado Jr, Jorge Amado, Oswald de Andrade, todos ligados ao PCB. Formado em sociologia com especialização em etnologia passou a trabalhar com o Marechal Rondon no Serviço de Proteção aos Índios (SPI) onde permaneceu até 1957, dedicando-se à questão indigenista. Segundo nos informa Bomeny, Darcy participou ativamente da fundação do Museu do Índio, “criado para apresentar os índios à sociedade sem os preconceitos tão vulgarizados de selvageria” (Bomeny, 2001, p. 45). Ali ele implementou o primeiro curso de pós-graduação em antropologia destinado a formar pesquisadores, mas no final dos anos 1950 entrou em choque com a comunidade acadêmica e aproximou-se do campo educacional.
O encontro com Anísio Teixeira foi inesperado e, a princípio, os dois se estranharam. Porém, ao conhecê-lo melhor, Darcy mudou de opinião, selando uma parceria que duraria até a morte de Anísio em 1971. Costumava afirmar que o educador representou para ele o mesmo que Rondon em outros tempos e outro contexto. Baixinho, irrequieto, com mais dúvidas que certezas, mais perguntas que respostas, Anísio o ensinou a duvidar e a pensar (4). Juntos trabalharam no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) e no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) onde dirigiu um programa de pesquisas que reuniu os melhores cientistas sociais, todos mobilizados na elaboração de projetos que visavam à implantação no Brasil uma educação verdadeiramente democrática.
Participou ativamente com Anísio no movimento em defesa da escola pública e, em 1959, foi encarregado pelo presidente Juscelino Kubitscheck de planejar a Universidade de Brasília (UnB), assumindo sua reitoria em 1961. No ano seguinte tornou-se Ministro da Educação de João Goulart e pôs em execução o I Plano Nacional de Educação elaborado por Anísio Teixeira que o substituiu como Reitor na UnB. Em 1963 foi nomeado Chefe da Casa Civil e com o golpe civil-militar de 1964 exilou-se no Uruguai. De volta ao Brasil em 1968 foi preso após a decretação do AI-5 passando nove meses no cárcere. Absolvido das acusações que lhe imputavam, exilou-se na Venezuela, Chile e Peru a convite dos governos progressistas que se constituíram na América Latina.
Em 1979 recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Paris. Anistiado, retornou ao cargo de professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e associou-se ao projeto político de Leonel Brizola, tornando-se vice-governador do Estado do Rio de Janeiro em 1983. No ano seguinte, assumiria os cargos de Secretário de Cultura e Coordenador do Programa Especial de Educação. Nessa função construiu o Sambódromo que, além de passarela do Carnaval, abriga um complexo escolar com capacidade para 5000 alunos e a Casa da Criança que promoveu atendimento ao pré-escolar em áreas carentes integrando escolas e comunidades. O ponto alto de seu projeto educacional deu-se com a implantação de 117 Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) destinados a fornecer educação integral a 600 crianças cada um, além de receber 400 alunos à noite na modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos), à época denominado ensino supletivo.
Derrotado em 1986 nas eleições para o cargo de governador, reintegrou-se ao grupo de pesquisadores do CNPq e, no ano seguinte, assumiu a Secretaria de Desenvolvimento Social de Minas Gerais com a expectativa de implantar o programa de escolas em tempo integral, mas não obteve sucesso e acabou solicitando exoneração. Em 1989 criou em São Paulo o Memorial da América Latina, projeto de Oscar Niemeyer. Eleito senador da República pelo Rio de Janeiro em 1990, elaborou projetos de lei, emendas e pareceres sobre educação, entre os quais o projeto do qual foi relator, sancionado em 1996 como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, denominada Lei Darcy Ribeiro.
Colaborador de Brizola em seu segundo governo (1991-94), Darcy deu continuidade ao Programa dos Cieps, além de ser responsável pela implantação dos Ginásios Públicos nos quais os cursos de primeiro e segundo graus foram reestruturados a partir de uma primeira etapa com cinco anos de escolaridade e uma segunda, denominada ginásio, do 6º ao 10º ano de estudos, com opção para horário integral. O término dessa segunda fase habilitaria o jovem para o ingresso no mercado de trabalho e, ao final desse programa, havia em funcionamento 68 Ginásios Públicos. Por fim, criou em Campos/RJ a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) a qual chamou “Universidade do Terceiro Milênio” cuja finalidade seria “dominar uma tecnologia avançada que pudesse habilitar o país a desenvolver suas potencialidades no próximo século.” (5)
Em 1993 tornou-se “imortal” ao ocupar a cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras (ABL) e, dentre as várias homenagens que recebeu, nenhuma significou tanto para ele como a Comenda Anísio Teixeira concedida pela CAPES, pois, além de reconhecê-lo como educador, vinculou para sempre seu nome ao daquele que considerou seu maior mestre. Darcy Ribeiro faleceu em Brasília a 17 de fevereiro de 1997, deixando aos intelectuais uma advertência: “O Brasil não deu certo. Ainda não deu. Nossos intelectuais, por isso mesmo, são urgidos a tomar posição política. A miséria é grande demais para que possam ficar alheios” (6). Confessadamente vaidoso, reconheceu em uma de suas últimas declarações que havia colecionado mais fracassos que vitórias em suas lutas, admitindo que “pior seria ter ficado ao lado dos vencedores” (7). Esse foi Darcy Ribeiro. Polêmico, indisciplinado, irreverente. Simplesmente genial.
Notas da autora:
- VENTURA, Zuenir. Ei, ei, ei, Darcy é nosso Rei. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 fev.1997.
- BOMENY, Helena. Darcy Ribeiro – sociologia de um indisciplinado. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
- Donald Pearson, sociólogo estadunidense (1900-95) defendeu sua tese de doutorado na Universidade de Chicago em 1939 sobre as relações raciais na Bahia. Permaneceu como professor na ESP/SP até 1959.
- RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Cia das letras, 1997, p. 223.
- MAURÍCIO, Lúcia Velloso. Verbete Darcy Ribeiro. In: FÁVERO, Maria de Lourdes; BRITTO, Jader Medeiros. Dicionário dos Educadores no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1999, p.144.
- Idem, p. 145.
- RIBEIRO, Darcy. Fala aos moços– Prólogo. Cartas, falas, reflexões, memórias. Brasília: Gabinete do senador Darcy Ribeiro, n. 12, 1994, p. 7-10. In: BOMENY, Helena. op. cit, p.281.