Como combater as desigualdades em educação?

Sonia Castro Lopes

Resultados de pesquisa sobre o impacto da pandemia de Covid-19 na Cidade de Deus, Rio de Janeiro.

Por Sonia Castro Lopes

Uma das mais perversas consequências da pandemia Covid-19 no Brasil foi a acentuação da desigualdade no campo educacional. Muito já se falou sobre as dificuldades de acompanhar um ensino remoto por parte das crianças e jovens da periferia, em sua maioria negros e pobres. A falta de acesso à internet e o acúmulo de tarefas que permitem a sobrevivência dos estudantes desprovidos de recursos prejudicam ou anulam qualquer possibilidade de êxito escolar. Se o direito de acesso ao ensino público e gratuito para todas as crianças, jovens e adultos foi assegurado pela Constituição Federal de 1988, na prática, constatamos que ainda estamos bem distantes dessa utopia. E a crise pandêmica escancarou aos nossos olhos essa triste realidade.

Sabemos o quanto a desigualdade em educação pode concorrer para o aumento das desigualdades econômicas e sociais. Se num determinado período a desigualdade se manifestava pela falta ou pouca oportunidade de acesso ao sistema escolar formal, hoje essa situação encontra-se quase superada. As etapas finais da educação básica (ensino fundamental e médio) já se tornaram obrigatórias, bem como a segunda etapa da educação infantil (pré-escola). Infelizmente, temos ainda uma lacuna na oferta da primeira fase da educação infantil (0-3), tão necessária tanto para as crianças quanto para os pais que precisam trabalhar e deixar seus filhos em instituições seguras e comprometidas com a prática pedagógica adequada à idade dessas crianças. Portanto, hoje, a grande questão que se impõe diz respeito à permanência dos alunos e à capacidade de a escola oferecer aos estudantes um ensino capaz de habilitá-los aos desafios de uma sociedade pautada pelos avanços tecnológicos.

Essas questões, se bem planejadas, evitariam a evasão escolar que tanto assusta os especialistas, notadamente no decorrer da pandemia. As condições de oferta de ensino devem ser iguais para todos, pois só a partir desse tratamento homogêneo pode-se avaliar o sucesso escolar. Aliás, a promessa de um ensino de qualidade está posta na Constituição Federal, mas sabemos que esse conceito de “qualidade” é bastante subjetivo e depende de inúmeros fatores para orientar as políticas públicas de educação.

O pensamento liberal que dá o tom para o financiamento das políticas educacionais nos países emergentes insiste em estimular o esforço individual como fator de êxito escolar, ou então propõe medidas assistencialistas. Sabemos que as coisas não ocorrem dessa forma. Como esperar o sucesso de estudantes que não partiram do mesmo patamar em ternos de oportunidades escolares ou familiares? Somente através de políticas educacionais comprometidas em combater as desigualdades será possível alcançar resultados satisfatórios.

Trouxemos para nossa discussão um exemplo de pesquisa que pode orientar as políticas de educação a obter resultados promissores diante da catástrofe pandêmica que se abateu sobre o país.

Trata-se de uma investigação desenvolvida pelo Coletivo de Pesquisas Construindo Juntos* que tem  como campo de ação a comunidade Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, uma das mais impactadas pela Pandemia. Segundo relatório parcial dos pesquisadores ** a situação afetou a economia local, bem como a saúde mental e a educação de crianças, jovens e adultos da comunidade. Com escolas públicas fechadas entre março de 2020 a agosto deste ano, algumas crianças passaram a ter aulas remotas enquanto outras recebiam apenas folhas de exercícios para serem completados em casa, sem qualquer assistência. Com poucos recursos digitais ou alguém para orientá-los nas tarefas, a evasão atingiu níveis elevados, já que os estudantes se desinteressaram das atividades propostas pela escola. Além desse desinteresse, a crise econômica obrigou muitos deles a deixarem a escola para trabalhar e compor a renda básica familiar. Este é apenas um exemplo de locais bastante afetados pela tragédia que necessitam urgentemente de programas de reforço e políticas de apoio para que suas crianças e jovens possam recuperar o ano perdido.

Em linhas gerais, esses são os principais resultados da pesquisa:

  1. Em 54,2% das casas da CDD moram crianças em idade escolar (6-12 anos). As crianças são cuidadas em grande maioria por mulheres (73%), apenas 7% por homens e 20% por ambos.
  2. Dentre os motivos pelos quais os adultos não conseguiam auxiliar as crianças nas tarefas, destacam-se: falta de tempo (36%), pouco entendimento das matérias (31%), falta de acesso à internet (25%) e dificuldades em usar celulares, tablets ou computadores (15%).
  3. O modelo de estudo mais comum  entre as crianças  foi através de apostilas  com folhas de exercícios, seguido por aulas online, sendo que 14% não teve acesso a qualquer modalidade de ensino.
  4. 97,3% dos entrevistados afirmaram que  as crianças não estavam aprendendo tanto em casa como na escola.
  5. Apenas 8% das crianças estudaram mais de 5 h por semana, 16% estudaram de 3 a 5 h, 44% tiveram 1 a 2 h de estudos e 32%, ou seja, um terço das crianças sequer dispôs de uma hora por semana para estudar durante a pandemia.
  6. 84% das crianças recebiam aulas através de telefones celulares, sendo que apenas 7% dispunham de computadores e 5% de tablets.
  7. A maioria das crianças (63%) assistia TV durante a pandemia,  23% brincavam na rua e apenas 14% liam livros,  revistas ou acessavam sites educativos.
  8. Em 84% das casas houve estímulo para as crianças voltarem à escola, mas  os responsáveis ponderaram que seria necessário um programa de reforço escolar para a recuperação do aprendizado.
  9.  38% dos responsáveis relataram que o motivo de as crianças não desejarem voltar à escola seria o medo de não aprender o conteúdo do próximo ano.
  10. O que as crianças precisam para recuperar o aprendizado? Segundo os entrevistados as soluções seriam: a) Reforço escolar (84%), b) horário escolar integral (44%), c) internet ilimitada (32%), d) equipamentos tecnológicos (26%).
  11. Em 39% das casas moram adolescentes em idade escolar (13-18 anos).
  12. Somente 44 % dos adolescentes acompanharam o material escolar durante a pandemia.
  13. 12% dos adolescentes desistiram da escola durante a pandemia.
  14. Em 21 % das casas, pelo menos um adolescente começou a trabalhar para ajudar nas despesas.
  15. Um total de 88% de adolescentes entrevistados acessou as redes sociais durante a pandemia, sendo que 22% passava mais de 8 h nessa atividade.
  16. Mais da metade dos jovens estudantes (56,3%) não conseguiu acessar o material escolar regularmente.
  17. A taxa de evasão escolar entre adultos na comunidade foi cinco vezes maior que a do país. 73% dos adultos da CDD matriculados em cursos ou faculdades desistiram durante a pandemia.

Para combater as desvantagens geradas pela pandemia, a pesquisa recomenda que o poder público priorize um projeto de reforço escolar; uma política de acesso à internet para pessoas em situação de vulnerabilidade social; disponibilização, através do MEC, de livros, computadores, internet no ambiente escolar, além de investimento em professores e infraestrutura. Recomenda, ainda, a adoção de estratégias para conter a evasão escolar, para lidar com as consequências psicológicas e emocionais causadas pela pandemia, investimentos em programas de incentivo à leitura e inserção de assistentes sociais, psicopedagogos e psicólogos nas escolas.

Essas políticas serão de grande importância para recuperar os danos causados em crianças e jovens que sofrem os efeitos das desigualdades sociais e educacionais que afetam os moradores da Cidade de Deus. O resultado da pesquisa evidencia o esforço dos moradores da comunidade em comunhão de interesses com os pesquisadores que se debruçam sobre a temática. Resta ao poder público ter vontade política para resolver o problema.

Notas

* Coletivo de Pesquisa Construindo Juntos, 2021. Cidade de Deus, Rio de Janeiro, Brasil.   www.construindojuntos.com

**Integram o grupo de pesquisa Cristiane Martins (assistente social), Miriam de Andrade (Coordenadora da Ong ASVI – Associação Semente da Vida da CDD), Jacob Portela (Analista de Gestão de Saúde/Fiocruz, mestre em Ciência Política/UFF), Ana Cláudia Araújo (Estudante de Serviço Social/UERJ), Lidiane Barbosa (Professora de Ciências Biológicas). A pesquisa é coordenada por Anjuli Fahlberg (Professora de Sociologia da Tufts University, Medford, Massachussets) que tem como assistente a estudante de Sociologia da mesma universidade, Sophia Costa. Projeto financiado pela Faculty Research Award, Office of the Vice Provost for Research, Tufts University Diversity, Education, Inclusion and Justice Grants-in-Aid.

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