Por Maria Cristina Fernandes – Valor Econômico
Em menos de três meses desde sua volta à Casa Branca, a extrema-direita foi capaz de deixar em apuros o mercado de títulos públicos, reserva da poupança americana, desvalorizar o dólar frente às principais moedas e desmantelar cadeias mundiais de produção com as idas e vindas de seu tarifaço.
O Brasil tem conseguido escapar relativamente ileso, com chances de vir a ganhar mercados anteriormente ocupados pelos chineses, graças ao pragmatismo e à capacidade de negociação do Itamaraty e do vice-presidente Geraldo Alckmin.
O que resta por ser explicado é como, neste momento de demonstração inequívoca de incúria administrativa de Donald Trump, o bolsonarismo, que nele se espelha, dê sinais tão contundentes de vitalidade, como o alcance das assinaturas necessárias para a urgência do projeto que anistia os golpistas do 8/1, protocolado na tarde desta segunda na Câmara.
As 264 assinaturas alcançadas, sete a mais do que o necessário, somam quase o triplo da bancada do PL. Quem dá sobrevida ao bolsonarismo são parlamentares espalhados por siglas como PP, União e PSD, que compõem o governo Luiz Inácio Lula da Silva.
Como a maioria dos brasileiros refuta a anistia é difícil entender por que o tema alcança apoio majoritário na Câmara. Some-se a isso o interesse dos caciques desses partidos em lançar nomes alternativos na disputa presidencial de 2026, como os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e de Goiás, Ronaldo Caiado, para que reste por ser explicado o alcance tão eloquente da causa.
O aparente contrassenso se explica no apelo que o bolsonarismo tem na eleição proporcional. De que outra maneira o PL teria conseguido fazer a maior bancada da Câmara com nomes como o subtenente Hélio Lopes (PL-RJ) como o deputado federal mais votado do Rio em 2018, quando adotou o nome de “Hélio Bolsonaro”? Reeleito, com 200 mil votos a menos depois que o TRE-RJ vetou o uso de sobrenome fantasia, apresentou um projeto pelo “Dia Nacional da Facada Nunca Mais”.
Não se trata de devolver a elegibilidade de Jair Bolsonaro, mas de se valer de sua condição de puxador de votos, tanto para candidaturas proporcionais quanto majoritárias da direita.
Tornou-se lugar comum a crença de que nenhum candidato de direita chega ao Palácio do Planalto sem os votos do ex-presidente. A incapacidade de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus aliados em explorar a repulsa à ameaça extremista completa a charada.
Esta perspectiva parece desautorizar a aposta num acordo entre a presidência da Câmara e o Supremo Tribunal Federal pela modulação da dosimetria do 8/1.
O ministro Alexandre de Moraes mandou a Débora “do batom” Santos para casa mas nem assim foi capaz de convencer que a reclusão pode parecer longa, mas a chance progressão de pena é alta.
Um presidente de partido envolvido na negociação de um acordo explica que a assinatura da urgência bastaria para Bolsonaro atestar o engajamento dos parlamentares na causa.
Este acordo levou a ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, a externar como “defensável” uma redução de pena dos golpistas e voltar atrás depois da reação do STF.
A ministra acabou por expor a dificuldade do deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) de se impor perante a Casa que preside.
Motta mostra-se incapaz de resistir à pressão de seu principal eleitor, o deputado Arthur Lira (PP-AL), pela cassação do deputado Glauber Braga (Psol-RJ).
A mesma legislatura que permite ao deputado Chiquinho Brazão (sem partido-RJ) manter seu mandato um ano depois de ter sido preso como mandante da morte de Marielle Franco e Anderson Torres, caminha para cassar o mandato de um parlamentar esquentado.
Além de chutar um militante do MBL que xingou sua mãe, Braga denuncia dia sim e o outro também o achaque das emendas parlamentares. Brazão passou nove meses preso recebendo salário e verbas de gabinete da Câmara sob a gestão Lira e o faz há quase quatro sob Motta.
Pesa a favor de um acordo com o STF a disposição da Corte em derrubar qualquer anistia que venha a ser aprovada.
Pesa contra a indisposição parlamentar em relação a uma Corte que não lhes cortou as emendas mas cerceou a liberalidade de gastá-las e tem 80 ações contra parlamentares na fila de julgamento.
Ao subscrever a anistia, o parlamentar dá um voto de censura a este poder cerceador do Supremo.
Quem lhes garante que Tarcísio, se um dia chegar a presidente, vai apoiar um movimento por impeachment no STF como um presidente de sobrenome Bolsonaro o faria?
O caldo engrossou demais ou ainda cabe mais um ingrediente? Como se explica que um parlamentar anunciado como o escolhido pelo presidente para ocupar um ministério diga que vai consultar a bancada?
A Pasta das Comunicações é o que menos importa. O que vale é quem vai substituir o deputado Pedro Lucas Fernandes (MA) na liderança do União na Câmara.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP) quer colocar o ex-ministro Juscelino Filho (MA), no cargo para ditar a alocação de emendas também na Casa ao lado. A bancada de deputados se rebelou e deixou Lula com a caneta na mão.
A defesa da anistia é, portanto, apenas a bandeira mais vistosa do movimento majoritário de parlamentares que cresceram e apareceram sob o bolsonarismo.
Associam-se ao golpismo para continuar subvertendo a separação dos Poderes, o Orçamento e as leis da República.
Maria Cristina Fernandes é jornalista do jornal Valor Econômico