EDUCAÇÃO
Por Sonia Castro Lopes
O ensino domiciliar que, de forma pedante, vem sendo denominado homeschooling, tem sido uma das pautas prioritárias do atual governo. De acordo com esse modelo de ensino, crianças e jovens recebem aulas em suas casas com o apoio de adultos que assumem a responsabilidade pela aprendizagem. Em geral, são os próprios familiares ou um grupo de pais/responsáveis que se organizam e dividem entre si o ensino dos diversos componentes curriculares. Há ainda a possibilidade de contratação de professores particulares. Os defensores do ensino domiciliar argumentam que estão em jogo questões religiosas, princípios e valores familiares que devem ser preservados, insatisfação com o ambiente da escola por ser um local de violência e bullyng, além da convicção de que esse modelo contribuirá para aumentar a qualidade de ensino dispensado aos seus filhos.
Até então não havia legislação específica sobre o assunto. Na verdade, não há proibição, pois de acordo com a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases, a educação é “dever do Estado e da família.” Por outro lado, essa mesma lei prevê que a educação dos filhos é dever dos pais ou responsáveis, cuja obrigação é “efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade.” E se não há legislação específica, é possível recorrer à justiça e obter autorização para educar em casa. Em setembro de 2018, o STF decidiu que a educação domiciliar só deveria ser admitida quando houvesse legislação que regulamentasse o assunto.
Na última quarta feira (19) a Câmara de Deputados regulamentou o ensino domiciliar por meio de um acordo entre os interesses de deputados bolsonaristas que defendiam total ausência de regras para a realização dessa modalidade de ensino e propostas de parlamentares do Centrão. Representante da ala radical, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-PR) argumentou que professores formados apenas em cursos de ensino médio são uma realidade no país, portanto bastava aos professores domiciliares esse nível de instrução. Sob a batuta do líder do governo, Ricardo Barros(PP-PR), acabou prevalecendo a proposta da relatora Luisa Canziani (PSD-PR) que prevê a necessidade das crianças estarem matriculadas em escolas que controlariam sua frequência e rendimento por meio de encontros e avaliações semestrais.
O que, então, ficou decidido?
Pais que tenham ensino superior ou educação profissional tecnológica podem educar os filhos em casa, desde que nunca tenham sido condenados por crimes de violência contra a mulher, tráfico de drogas e todos aqueles previstos no ECA (estatuto da Criança e do Adolescente). O currículo a ser desenvolvido deve ser baseado na BNCC (Base Nacional Comum Curricular) vigente e trimestralmente devem ser enviados à escola relatórios das atividades pedagógicas realizadas. Quem for reprovado duas vezes consecutivas ou três vezes não consecutivas nas avaliações realizadas pelas escolas deve retornar ao ensino regular. O texto vai para o Senado e, se aprovado, deverá entrar em vigor em regime de urgência.
Nós, professores, repudiamos este projeto que vem recebendo diversas críticas Em primeiro lugar, teriam os pais ou responsáveis habilitação/qualificação adequada para ensinar? Terão eles conhecimento pedagógico suficiente para educar as crianças segundo a pauta da BNCC que lhes servirá de apoio? A prática dessa modalidade, de fato, melhorará a qualidade do ensino? Tudo muito incerto e subjetivo. Além disso, e esse me parece o argumento mais forte, é fato que a escola constitui um espaço de socialização onde os estudantes devem conviver com grupos diversos em constante diálogo, além de ali aprenderem habilidades e competências que em casa não podem ser desenvolvidas como, por exemplo, trabalhar em equipe ou desenvolver uma boa comunicação oral. E mais, apenas as famílias com alto poder aquisitivo poderiam optar pela educação domiciliar, já que ela pressupõe disponibilidade dos responsáveis para orientar os estudos ou a contratação de professores para ministrar os conteúdos curriculares. Isso sem mencionar os possíveis abusos sofridos por crianças que, em sua maioria, são cometidos por membros da própria família ou por pessoas que frequentam sua residência.
Uma das mais graves consequências da pandemia para o cenário educacional foi justamente a exposição da terrível desigualdade a qual estão submetidas nossas crianças e jovens. Aulas domiciliares, remotas ou híbridas ministradas por boas escolas privadas para as camadas abastadas. E para os alunos pobres, os usuários de escolas públicas? Por possuírem dificuldades em acompanhar as aulas remotas e por total falta de acesso aos meios digitais ficaram em casa, muitas vezes sozinhos, porque os responsáveis precisam sair para trabalhar, ou na rua expondo-se à violência e à contaminação.
Estamos de volta a um passado elitista e escravocrata quando os filhos da aristocracia dispunham de preceptores para lhes ministrar tanto o ensino das primeiras letras quanto o conteúdo das cadeiras necessárias à preparação para o prosseguimento de estudos em bons colégios e nas poucas universidades do país, onde invariavelmente formavam-se médicos ou advogados. Aos pobres e remediados restava o ensino público, carente de escolas e professores para acolher a população em idade escolar. Não por acaso chegamos a meados do século passado com um índice de analfabetismo que beirava 50% e até hoje, sete décadas depois, ainda não foi zerado.
Ou seja, todas as iniciativas e propostas desse governo no campo educacional visam à exclusão e à perpetuação das desigualdades. Impossível pensar nos dias de hoje, diante de uma sociedade multifacetada, numa educação que não contemple diferenças, que não acolha, que não combata preconceitos e práticas autoritárias. Que valores queremos passar aos nossos jovens? Que cidadãos queremos formar? Vivemos hoje, na educação, um retrocesso estarrecedor.