Ocorreu há 36 anos. Varamos dia e noite na estrada, eu e meus irmãos de vida Humberto Scavinsky e Juraci de Souza. O objetivo era cerrar fileiras com o povo ocupante da Fazenda Annoni, em Sarandi, no interior do Rio Grande do Sul.
O que acontecia ali era, na prática, a organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, hoje o mais importante coletivo popular de nosso país.
Vale contar um tantinho… Depois da estruturação do famoso acampamento da Encruzilhada Natalino, obra constituída com forte apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da igreja católica, decidiu-se pela ocupação de terras ociosas da região.
E tudo começa na madrugada de 29 de Outubro de 1985, quando agricultores de 33 cidades do Alto Uruguai e Missões, em mais de 150 ônibus e caminhões, começam a se aglutinar nas beiradas da RS 324, entre Passo Fundo e Ronda Alta.
O passo seguinte é ocupar a fazenda Annoni, desapropriada em 1972, largada ao tempo, no aguardo de um arranjo burocrático entre o executivo e o judiciário. Eram 9 mil hectares improdutivos e sete mil bocas famintas, com braços dispostos ao trabalho duro.
Ali, começou a saga. No ano seguinte, em Outubro de 1986, teve início o assentamento provisório. Logo, a polícia cercou a área, ameaçando desalojar as famílias. Muita gente foi para lá, tributar apoio aos trabalhadores, entre eles, o companheiro Jair Meneguelli.
Pois, também participamos! Era manhãzinha enevoada e fria. No bosque, diante da fogueira, tomamos café e chimarrão com aquela gente boa de resenha. O pão com manteiga forrou o estômago.
Mais tarde, naquele dia, haveria um ato religioso ecumênico, com procissão pela terra em processo de plantio. O líder local, no entanto, Josino Rodrigues, havia sido preso. Soubemos que, na cadeia da cidade, sofria tremendamente com a gastrite.
Quem soube disso também foi a dupla Lucélia Santos e Paulo Betti, que acabara de chegar ao assentamento.
Bem, vale dizer que Lucélia é de Santo André, no ABC paulista, nascida em 20 de maio de 1957 (agora com 65 anos), filha do operário Maurílio Simões dos Santos. Adquiriu, desde cedo, consciência política e social.
Na época, eu era repórter de Veja, embora estivesse lá como militante. Contei ao Paulo e a Lucélia o que se passava. Ela surtou, um surto do bem. “Não, de jeito nenhum, isso não pode ficar assim”, sentenciou. “Vamos para lá agora mesmo”.
Ela seguiu numa caminhonete que logo levantou poeira no estradão. Segui atrás, numa Kombi, com o Paulo. No centro de Sarandi, ela comprou vários litros de leite para o líder adoentado.
Dei carteirada de jornalista, mas o delegado não quis falar comigo. Por uma janelinha lateral, então, ouvi o escrivão adverti-lo: “Doutor, e agora o que fazemos, pois está vindo aí a Sinhá Moça?”
Eu ri. Era a personagem que Lucélia interpretava numa novela da Rede Globo de Televisão. A autoridade, então, definiu: “não entra mais ninguém, porque isso aqui não é bagunça; só vai entrar a Sinhá Moça”.
Ela foi para a cela e tentou consolar e animar o companheiro detido. Nisso, soubemos que a procissão ia ter início. Retornamos ao assentamento. Nossa companheira atriz permaneceu na cidade, articulando-se com advogados, fazendo ligações para promotores, juízes e gente da imprensa.
Lembro que seguíamos em oração por um campo inclinado, e o vento da tarde, ondeava o trigo, conferindo-lhe o desenho cinético das ondas marinhas. De repente, um estrondo, um buzinaço. Do lugar onde o sol começava a se deitar, um caminhão despontou, trazendo Lucélia e o líder, agora liberto, pronto a participar da cerimônia.
Foi das cenas mais belas da vida. E, não raro, entrego-me ao pranto lembrando desses momentos. Em minutos, todos se juntaram na procissão, canto pungente e uníssono. Era possível sentir a energia no ar, a força da comunhão, o perfume doce da esperança.
Aquele dia terminou assim, com vitória. No dia seguinte, nos despedimos do povo. Acenamos para Marli, Josino e Rose, entre outros. Ficaram para trás, a fim de fazer história.
No ano seguinte, em um protesto próximo da BR-326, na mesma Sarandi, um caminhão guiado por um fascista projetou-se contra os sem terra, que faziam uma manifestação pela reforma agrária.
Resultado: 14 agricultores feridos e três mortos. Tombaram Lari, de 23 anos; Vitalino, de 32; e a brava Rose, na época com 33 anos e mãe de três filhos.
A companheira deixou um bebê de um ano e meio, Marcos Tiaraju, cujo nome era homenagem ao líder indígena resistente das Missões.
O menino foi bem criado. Aos 19 anos, foi estudar Medicina. Onde? Em Cuba! Formou-se em 2012, ano em que foi aprovado no Revalida. No ano seguinte, apresentou-se ao MST para atuar no atendimento aos sem terra. Depois, tornou-se também supervisor acadêmico do programa Mais Médicos.
Lucélia Santos seguiu fazendo sucesso, literalmente mudando o mundo, viajando para espalhar a palavra de solidariedade, amorosidade e justiça social. Ainda viveríamos experiência semelhante em outro episódio, aquele de Xapuri, no Acre, terra de Chico Mendes. Mas a narrativa deste “causo” fica para outro artigo.