Construir Resistência
Fb Img 1711541065306

Quando o errado virou certo

Por Rogério Marques –

Quarentena News 

O Estado apodreceu, dominado por milícias, tráfico, chefões do jogo-do-bicho, grupos de extermínio, políticos corruptos.

Fb Img 1711541065306
Policial durante operação no Morro do Fallet, em Santa Teresa. (Foto: Betinho Casas Novas/Estadão Conteúdo)

 

Um senhor veio à minha casa nesta terça-feira, 26, trazer um ar condicionado que havia ido para o conserto. Eram dois funcionários carregando o aparelho. O mais velho, por volta de uns 60 anos, negro, chegou na janela e perguntou: aqui tem som alto?

Respondi que não, já entendendo o motivo da pergunta. Ele disse, então, desabafando: “Lá onde eu moro é fogo, não dá pra dormir. Fim de semana as paredes chegam a tremer. A gente pede pra moderar um pouquinho e eles dizem: se fosse o chefão o senhor não ia reclamar, né?”

Eu entendi logo a pergunta que aquele senhor me fez porque conheço outras pessoas que moram em favelas e se queixam da mesma coisa: o som dos “paredões”, como são conhecidas as grandes caixas de som de alta potência, empilhadas, formando uma parede. Milhares de trabalhadores que “ralam” a semana inteira, que enfrentam horas de engarrafamento, em péssimo transporte público, não têm o sagrado direito ao sono, quando chega sexta, sábado, domingo.

E o que tem isso a ver com o noticiário de domingo, 24, sobre as prisões dos acusados de terem mandado matar a vereadora Marielle Franco, do PSOL, quando morreu também o motorista Anderson Gomes? Tem tudo a ver.

Houve uma perda de controle total no Rio de Janeiro, e perda também de respeito ao próximo. É um caldo sinistro, fétido, misturado na mesma panela: chefões do jogo do bicho que corrompem impunemente; milícias e tráfico que dão as cartas onde o Estado é ausente; grupos de extermínio; amplos setores da polícia e do Judiciário que metem as mãos, sem pudores, na lama da corrupção. Governadores de estado e chefes de Polícia sendo presos com uma frequência assustadora.

Chegamos a um ponto em que o errado passou a ser visto como certo, e as vítimas passaram a ser consideradas culpadas. “Teve o celular furtado porque deu mole”. “Foi assaltado porque é otário e tava no lugar errado”. “Foi estuprada? Quem mandou beber demais?”

Os policiais que não compactuam com a corrupção chegam a correr risco de vida, porque acabam atrapalhando os colegas que querem tirar algum por fora. “Qual é, cara? Se o homem que tá lá em cima leva o dele, por que a gente não vai comer um filé no fim de semana?”

Mudando de ambiente, quando um profissional pergunta, em seu consultório bem decorado, se queremos a consulta com ou sem recibo, porque sem recibo é mais barato, também estamos navegando em águas turvas, se topamos o jogo.

O assassinato de Marielle e o som dos “paredões” estão interligados, de alguma forma. Alguns minimizam, dizem que a ausência de leis e a violência acontecem também em outras cidades. No Rio é diferente. A violência está no próprio Estado. Estamos perto de chegar aos piores tempos da Itália sob o poder da Máfia.

As maiores vítimas estão nas comunidades onde moram pessoas como o senhor que transporta aparelhos de ar condicionado. É lá que vivem as pessoas por quem Marielle lutava. É lá que vivem jovens, quase sempre negros, abatidos pela violência policial, em chacinas que se repetem.

Tudo isso tem a ver com a massificação da pobreza e a falta da presença do Estado. Tem a ver com a construção de um país injusto, desigual. Com a glamourização do jogo do bicho, do crime organizado e seus capos, que contam com a proteção de maus policiais.

Há quem ainda se ufane da Cidade Maravilhosa. Vivem do passado, de um tempo em que as sementes do mal já estavam sendo plantadas, há 50, 60 anos, com a falta de reformas sociais sempre abortadas por golpes, como o de 1964.

Aquela “Cidade Maravilhosa” ficou reduzida às belas paisagens e algumas vitrines da Zona Sul. Mesmo assim é preciso cuidado, estar sempre ligado, olhar para os lados, principalmente quando o sol se põe.

Lembram dos três médicos de São Paulo, que estavam aqui para um congresso, assassinados quando tomavam cerveja em um quiosque da Barra da Tijuca, em 2023? Um deles foi confundido com um miliciano por uma quadrilha rival. Quem fez “justiça”, naquele caso, foram os próprios bandidos, que depois mataram o comparsa que errou na hora do “serviço”.

Na mesma Barra da Tijuca, apenas um ano antes, o jovem congolês Moïse Kabagambe foi assassinado a pancadas, em outro quiosque, porque foi cobrar uma dívida trabalhista.

Assim é o Rio. Para abrir um pequeno comércio, é preciso antes contratar um “segurança”. Existe um exército deles por toda a cidade. Ruas públicas são fechadas com porteiras e guaritas. A “segurança” particular, paga, é uma das origens das milícias, lá pelos anos 70. E a cidade vai se acostumando, vai banalizando as tragédias do cotidiano. As grandes e as pequenas.

O que fazer, diante disso? É preciso que a sociedade se organize e se dê as mãos para debater, buscar saídas, cobrar soluções, exigir reformas importantes. Entidades como ABI, OAB, Clube de Engenharia, CNBB, representantes de todas as correntes religiosas, universidades públicas e particulares, associações de moradores, Movimento Negro, Movimento LGBTQIA+, Movimento Feminista, entidades empresariais, instituições científicas. E, não menos importante, participação popular, de todos nós.

Outra coisa: este ano temos eleições municipais. Importante pesquisar e escolher bem os candidatos. Existem políticos bons, sim, batalhadores, corretos. As escolhas é que nem sempre são as melhores.

Não dá mais para banalizar ou minimizar a situação. Ou o Rio se une para se tornar um lugar digno de se viver, ou vai afundar cada vez mais e ultrapassar o fundo do poço.

Fb Img 1710799611378

Rogério Marques é jornalista

 

Compartilhar:

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email

Matérias Relacionadas

Rolar para cima