Do outro lado das montanhas, dos quintais, dos trilhos e…

Por Miriam Waidenfeld Chaves

A Mantiqueira era mágica. Seu paredão verde, ao impedir  que eu enxergasse a paisagem que existia atrás da serra, me excitava. Mirava ansiosa para suas montanhas, mas, infelizmente, meu olhar não conseguia  ultrapassar aquelas alturas incomensuráveis.

Rápida, do banco traseiro do carro de meu pai, tentava uma última vez.  Voltava a cabeça para que antes da próxima curva, ainda pudesse vislumbrar, de outro ângulo, o lugar que há poucos instantes  não conseguira captar.

Tarefa inglória.

Inventava, então, lugares imaginados. Uma casa perdida, um curral e um cachorro latindo.  Quem sabe, alguma alma solitária fritando uma linguiça. Buscava até por alguma fumaça no céu. Depois, concluía que por aqueles rincões só poderiam existir árvores, campos  em declives e rios tortuosos.

Passei, assim, a caçar o outro lado. Dos quintais. Das janelas. Dos trilhos e rios. Enfim, para minha alma infantil, imaginar os lugares que eu não conseguia avistar, entrar ou atravessar, se transformou na  minha brincadeira favorita.

Na casa de meu avô Alberto, por exemplo, sonhava em escalar o muro alto do quintal para saber de onde vinham as pereiras e os abacateiros, cujos galhos  insistiam em acenar para mim. Convidavam-me para uma estripulia. Mas, a minha miudeza, a falta  de uma escada gigante e a vigilância de minha avó me impediram. Assim, pisei naquele terreno apenas em minha imaginação. Era carregado de árvores, sombrio e frio. Sem o sol do lado de cá, que insistentemente batia sobre os dois pés de café e as inúmeras flores que coloriam o jardim, regado toda santa manhã por minha tia.

Era lindo, mas fácil de ser desbravado!

Quando minha avó não estava na cozinha dando suas instruções para Helena, me levava até a estação de trem.

Moradora do Rio de Janeiro, nos meus oito anos arregalava os olhos para ver  aquela máquina  chegar devagarzinho, apitando e  soltando fumaça. Maria da Fé, Itajubá Velho, Piranguinho,  povoados minúsculos que nunca conheci. Apenas na minha fantasia.

Quando o trem partia, de soslaio eu olhava para além dos trilhos para admirar a Boa Vista. Eu morava no Morro Chic. Sempre quis atravessar aqueles trilhos. Saber como vivia aquela gente que habitava o outro lado da estação. Nos domingos, quando minha mãe e tias perdiam a missa das 10:00 horas, na Matriz, atravessávamos aqueles trilhos apressadas para ir à Igreja de São José do Operário. No caminho, olhava para as casinhas, sem alpendre, janelas na calçada. Para minha tristeza, ainda fechadas, naquele dia de descanso.

Idealizava, então, chãos vermelhos, tetos com telhas aparentes, colchas de crochê e fogões a lenha. Na missa, encontrava seus moradores. Inventava  suas vidas,  enquanto o padre rezava em latim.

Lá  na casa de minha outra avó, a brincadeira era diferente. Corria para o quintal. Primeiro, me dirigia a uma Nossa Senhora em uma pequena gruta, rezava uma Ave Maria e zarpava para o galinheiro. Depois, chegava ao  quintal, nos fundos. Corria por entre mangueiras, jabuticabeiras, pereiras e goiabeiras. Enquanto descansava sob a parreira, sondava as árvores possíveis de serem escaladas. Buscava pela árvore melhor posicionada para bisbilhotar o quintal do vizinho: sombrio, cheio de árvores e folhas secas no chão. Quase abandonado.

Um dia pulei a cerca para caminhar por aquele paraíso perdido. O latido do cachorro me fez retornar às pressas. Só me restou subir na goiabeira, bem ali na fronteira,  escolher o melhor galho para me aboletar e, de lá, poder sonhar com aquela terra perdida.

Na roça, tinha a Mantiqueira me engolindo com suas araucárias centenárias. Andar a cavalo ou a pé pelas picadas tortuosas, frente a morros e estradinhas coalhadas de curvas, era uma festa. Meus olhos se adiantavam e  vislumbravam a paisagem que estaria por vir logo ali depois da próxima curva. Assim, continuava por horas.

Quando chegava à beira do rio, sua correnteza impedia a minha travessia para o outro lado. Perigosa,  aquela terra de ninguém, na outra margem, era coberta por copas de árvores gigantescas. Era ameaçadora e impenetrável.  Cheia de porcos do mato, cobras e anus gigantes. Sempre mais mágica do que o lado de cá. Resignada, meus olhos voavam para o outro lado e eu imaginava.

Cresci, mas não me emendei. Continuo atrás de uma curva, uma janela aberta. Um rio, um trilho, uma montanha para atravessar.

 

Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ.

 

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  1. “Do outro lado das montanhas, dos quintais, dos trilhos e…” nos fornece os códigos de uma dada linguagem nas trocas entre o vivido e o imaginário.

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