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Zona de Interesse: a banalidade do mal não serve de pretexto

Por Léo Bueno

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Divulgação

Nada acontece no início de ‘Zona de Interesse’, coprodução britânica e polonesa credenciada como candidata, na cerimônia da semana que vem, ao Oscar de melhor filme e ao mesmo tempo ao de melhor filme em língua não-inglesa.

Quando escrevo ‘nada’, quero dizer NADA mesmo: durante mais de três minutos, a tela fica preta e só ouvimos uma música ambiente neutra com alguns barulhos de fundo. Pula então para uma cena idílica, quase um quadro de Renoir, com famílias alemãs se divertindo às margens de um rio.

Esse idílio será a tônica do filme inteiro, até quase o seu final, pelo menos no plano imediato. Aparecerá um pai de família preocupado com seus filhos assim como com sua carreira. É um homem meticuloso, sempre bem-vestido, com muita atenção aos detalhes.

Ele se deita ao lado da filha e conta uma história para ela dormir. Escreve uma carta para seus colegas pedindo que não pisem nos canteiros de violetas. Pede que o superior hierárquico tente evitar sua transferência de cargo.

Acompanha os filhos e as crianças da vizinhança a se divertirem na piscina, tendo por trás um alto muro, que separa sua casa do que parece uma indústria com chaminés. Todo o filme vai se compor, em primeiro plano, da história desse homem, de seu casamento e de seu esforço trabalhista.

Ele existiu. Seu nome era Rudolph Höss. E as chaminés atrás do muro são os fornos do campo de concentração de Birkenau, em Auschwitz, Polônia, campo do qual ele foi o diretor absoluto durante dois anos.

CÓDIGOS – Daí a tela preta repleta de ruídos por três minutos no início do filme. É uma introdução claramente planejada pelo diretor Jonathan Glazer, cineasta bissexto que estreou com o ótimo ‘Sexy Beast’ e ainda causou estardalhaço com o duvidoso ‘Under the Skin’, aquele filme famoso por trazer Scarlett Johansson em pêlo. Seu propósito é o mesmo de muitas charadas: dar ao espectador os códigos para entender o filme.

Na tela inicial, Glazer quer dizer que a verdadeira história não está na vida burguesa que Höss viveu na Polônia ao lado de sua mulher, Hedwig Hensel, mas sim no que acontece no fundo – ou, mais precisamente, na contraposição entre as duas situações. Está, por exemplo, no que acontece na trilha sonora ou nos efeitos sonoros. Nos barulhos.

Não é fácil de fazer, muito menos de se obter sucesso, um filme sem ação imediata, que exige tanta aplicação do espectador. É cinema de gente grande, já experimentado por gente como Antonioni e Kurosawa. Se você assistir ao filme prestando atenção aos barulhos, o idílio se transforma numa história de terror.

Cabe lembrar: a produção adapta um romance do inglês Martin Amis, um dos muitos escritores liberais famosos da Inglaterra, e escrevo ‘liberal’ aqui no sentido mais conservador do termo.

CINZAS – Enquanto Höss escreve aos superiores, há ruídos de fundo. Prestando atenção, são ruídos perturbadores. Mas o personagem – que no mundo real seria condenado em Nuremberg e depois executado – sequer simboliza os objetivos do filme tanto quanto sua esposa, Hensel.

Enquanto ela conversa com vizinhas sobre os perrengues da vida adulta, há barulhos de trens no fundo. Só quem conhece a História sabe o que esses trens carregavam. Quando ela caminha pelo quintal no meio de hortinhas, há chaminés soltando fumaça do outro lado do grande muro. Se você não é um idiota, sabe o que são essas chaminés. Quando ela limpa a janela, caem-lhe cinzas sobre os ombros. Você sabe do que essas cinzas são feitas.

Em dado momento – em 1943, informo –, Höss é transferido do comando. O filme mostra, mas não informa o motivo da transferência: ele se servia da chamada ‘Divisão da Alegria’, a ‘Joy Division’, composta por prostitutas de origens judaica ou de outras minorias. Entre elas havia uma ativista, Eleonore Hodys, que ele engravidou. A personagem surge e desaparece do filme sem mais.

A esposa não aceita a transferência do comandante. Ainda que ao lado de sua casa aconteça o que acontece, sua vida é muito confortável para ser mandada para qualquer local incerto e não sabido. E o idílio dela com os cinco filhos continua, um idílio interrompido, só nós que estudamos História sabemos, em 1945.

BANALIDADE – O filme não chega tão longe. Ele pára onde transborda, na contraposição entre a civilização de frente e a barbárie de fundo. E o que transborda ali é o famoso conceito de ‘banalidade do mal’, com o qual a filósofa Hannah Arendt classificou quase todos os subalternos do sistema nacional-socialista. E aqui uma análise mais precisa fica também mais complicada.

Pois até certo ponto, no filme, Höss é a epítome da banalidade do mal. Só que na vida real ele não foi comparável ao personagem que inspirou o conceito de Arendt, o burocrata alemão Adolph Eichmann – e isso o filme não informa.

Durante o processo a que foi submetido após sua captura em 1946, Höss (que acusou os interrogadores ingleses captores de tortura) escreveu:

“Comandei Auschwitz até dezembro de 1943. Estimo que pelo menos 2.500.000 de vítimas foram executadas e exterminadas por gás e fogo, e pelo menos mais meio milhão sucumbiu à fome e às doenças, totalizando cerca de 3 milhões de mortos. Isso representa algo entre 70% e 80% de todas as pessoas enviadas a Auschwitz como prisioneiras, as outras tendo sido selecionadas e usadas para trabalho escravo nas indústrias do campo de concentração.”

Mais tarde, já condenado à execução que seria efetuada em 16 de abril de 1947, ele escreveria suas palavras tornadas mais famosas:

“Na solidão de minha cela, cheguei à conclusão amarga de que pequei gravemente contra a humanidade. Como comandante de Auschwitz, fui responsável por realizar parte dos cruéis planos do Terceiro Reich para a destruição da Humanidade. Ao fazer isso infligi terríveis feridas. Causei um sofrimento indizível ao povo polonês em particular. Que Deus possa um dia perdoar o que fiz.”

Mesmo que essas palavras comovam sensibilidades mais cristãs, devidamente ou não, elas denunciam ainda outra realidade.

Os fascistas, os nazistas e outros odiadores da humanidade são reformáveis e passíveis de consciência. Portanto, em algum momento da História, poderiam, como sujeitos da própria vontade, instar-se a não fazer o que acabariam fazendo. E, mais do que isso e por isso mesmo, não podem nem devem alegar ingenuidade ou o simples cumprimento do dever como atestado de sua inocência nos crimes contra a Humanidade de que foram encarregados.

Nesse sentido, a banalidade do mal de Hannah Arendt não pode (nem ela nunca reivindicou que pudesse) servir como isenção ou atenuante dos crimes dos nazistas. Pelo contrário: nenhum dos sujeitos deixa de ser responsável pela malha que se costura durante a construção de um sistema exclusivista, malha da qual ele faz parte, muitas vezes alegremente.

(Parêntesis algo pessoais. Por acaso, antes mesmo de assistir a ‘Zona de Interesse’, esse foi um assunto que me derrubou no meio da rua. Estava eu andando e pensando no passado recente quando tomei um soco das minhas lembranças e caí pra trás: há não mais do que três anos meu país chegou a ter, por dia, mais de 4,2 mil mortes por uma doença evitável.

4 MIL MORTES POR DIA! Hoje estamos – adequadamente, claro – escandalizados com 111 pessoas metralhadas na Palestina. Há três anos eram 4 mil POR DIA em nossos quintais!

Sabendo-se que o responsável pelo sistema de Saúde do país fez o possível para evitar, conscientemente e de propósito, as duas medidas preventivas mais importantes contra a doença – isolamento social e vacinação –, como não concluir que sofremos um genocídio no qual a banalidade do mal, representada pelas centenas de subalternos e apoiadores deste homem, representou um papel fundamental no morticínio?

A propósito da Palestina, vale o mesmo raciocínio. É indizível, é insuportável pensar que nós estejamos parando nossos afazeres para explicar a um direitista, americano ou brasileiro, que não se matam crianças e mulheres e civis – e que, no exato momento em que o fazemos, mais crianças e mais mulheres estejam sendo mortas, como se o próprio exercício de retórica fosse uma manobra diversionista para que a matança seja levada a cabo. Fecha parêntesis.)

O ATO DE MATAR – A consciência de que Höss foi um dos ‘arrependidos do nazismo’ – um arrependido de verdade, porque, ao contrário do ministro Albert Speer, sabia que o arrependimento não o salvaria do cadafalso – situa-o como um outro personagem, e aqui a imprensa parece não ter prestado atenção.

É o ex-paramilitar indonésio Anwar Congo, acompanhado pela câmera no documentário ‘O Ato de Matar’, de 2012. O homem matou mais de mil pessoas durante o golpe de Estado promovido pelo general Suharto contra o presidente Sukarno na Indonésia em 1965 e 1966.

O filme recria os processos de tortura e morte que Congo executou contra pessoas acusadas de comunistas, com ele fazendo com prazer o papel de si mesmo e mostrando pari passu os detalhes das execuções. Quando, porém, achamos que a banalidade do mal que o paramilitar realizou periga contagiar-nos também, tão leviano é o comportamento do assassino, ele passa por um momento de vítima, uma simulação sobre a qual não tem nenhum controle.

Depois disso, Congo tem engulhos, tenta vomitar por seguidas vezes. Não consegue. E não quer mais conversar com a câmera.

Pois ‘Zona de Interesse’ termina exatamente assim, e só pode ser de propósito.

Léo Bueno é jornalista, escritor, anarquista, roqueiro e corintiano. Portoriquenho de nascimento, trabalhou na rádio Jovem Pan de São Paulo e no Diário do Grande ABC, além de sites e revistas.

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