Um tiro que entrou para a história

Marly Motta

Marly Motta

 

A surpreendente declaração do presidente Bolsonaro proferida na última quinta feira (15): ” Só Deus me tira da cadeira presidencial, obviamente tirando minha vida,” me conduziu ao passado.

A menina de sete anos, que cursava a primeira série do antigo ensino primário, jamais esqueceria aquele  24 de agosto de 1954. Pela primeira vez, ela voltou da escola para casa sem a companhia da mãe, já que, às oito e meia da manhã, sua professora, com ar solene, havia comunicado que as aulas estavam suspensas em virtude da morte do presidente Getulio Vargas. Ao chegar em casa, encontrou a mãe e a avó aos prantos, como se aquele velhinho sorridente, cujo rosto ela se acostumara a ver em retrato, fosse membro da família. Não demorou a perceber que a emoção não se restringia a seus parentes. Naquele dia, milhares de pessoas correram às ruas ávidas para prestar homenagem e chorar a morte daquele que muitos consideravam “o pai dos pobres”. “Só morto, sairei do Catete”, foi a manchete da imprensa poucos dias antes do suicídio do presidente, o qual, depois de governar o país entre 1930 e 1945, havia voltado à presidência da República, “nos braços do povo”, nas eleições de 1950.

Longe de significar uma unanimidade à Nelson Mandela, Vargas foi, e ainda é, sob qualquer aspecto que se queira analisar, uma figura polêmica. Mesmo porque foi o governante que por mais tempo esteve à frente da presidência da República. Por isso mesmo, a chamada Era Vargas, pelo que representa para a construção da identidade do Brasil e do brasileiro, é um dos períodos históricos mais visitados por pesquisadores nacionais e estrangeiros, de diferentes formações. Historiadores, cientistas políticos, sociólogos, antropólogos e economistas, a partir de abordagens teóricas e perspectivas ideológicas diversas, transformaram esses anos em um celeiro de interpretações divergentes e polêmicas que resultaram na elaboração de conceitos como populismo, trabalhismo e corporativismo. Se é certo que Vargas foi filho de seu tempo, foi igualmente um de seus principais construtores.

Saio da vida para entrar na história”. Esta é, sem dúvida, uma das frases mais conhecidas da chamada carta-testamento que o presidente deixou como fonte legitimadora de seu ato suicida. A expectativa, tal como analisado por Ernest Kantorowicz em Os dois corpos do rei, era de que, embora o corpo “natural” fosse “mortal” e, portanto, consumido pelo tempo, um outro corpo, “místico e imortal”, sobreviveria, e “entraria na história”.

Vargas ascendeu ao poder em outubro de 1930, no bojo de um movimento que revolucionaria a face do país. Quinze anos depois, também no mês de outubro, foi deposto pelos militares, tradicionais aliados, divididos, no pós-guerra, quanto à manutenção do regime autoritário do Estado Novo. Apesar de apeado do poder, Vargas não perdeu a popularidade. Tanto que, em dezembro de 1945, dois meses depois de sua deposição, foi eleito para a Assembleia Constituinte por vários estados da Federação. No entanto, em carta à filha Alzira, sua auxiliar próxima, o ex-presidente desabafou: “(…) minha situação é um tanto semelhante àquela (…) da pessoa que morre e a alma não desencarna. De um lado, elegem-me para várias funções públicas (…). De outro lado, aconselham-me a não entrar no exercício dessas funções, considerando-me um homem pernicioso ou prejudicial. Estarei vivo ou morto para a vida pública de meu país? Preciso decidir-me e tomar um rumo.”

Manter-se vivo para a vida pública ou aceitar a morte política? Esse era o grande dilema do ex-ditador do Estado Novo, “exilado” em sua fazenda de São Borja, no Rio Grande do Sul. Exibindo um pragmatismo, associado a uma força popular evidente, Vargas não só influiu na vitória do novo presidente da República, ao declarar seu apoio ao general Eurico Gaspar Dutra (1946-51), como garantiu sua volta ao Palácio do Catete nas eleições presidenciais de 1950.

Apesar da votação estrondosa que então recebeu do eleitorado brasileiro, Vargas enfrentou um ambiente polarizado externa e internamente, alimentado por uma forte oposição no Parlamento e na imprensa. A radicalização e a polarização atingiram seu ápice com o atentado contra Carlos Lacerda – famoso por mover pesados ataques ao governo no jornal Tribuna da Imprensa –, que resultou na morte do major da Aeronáutica, Rubens Vaz. As investigações realizadas então resultaram em acusações a pessoas próximas do presidente, como Gregório Fortunato, chefe de sua guarda pessoal. Dessa vez, Vargas escolheu outro rumo. No dia 24 de agosto de 1954, decidiu “sair da vida” com um tiro desferido no próprio peito. Deixou uma carta explicando as razões de seu sacrifício. Para ele, sair da vida não significava morte política, e sim, o “primeiro passo no caminho da eternidade”.

Antes que outros governantes, aqui e acolá, se animem em seguir o exemplo acima citado, devo alertar que a trajetória do ex-presidente é muito particular. Afinal, quem mais poderia escrever?: “era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não será escravo de mais ninguém.”

 

Marly Motta é historiadora; professora aposentada da FGV-RJ

 

 

 

 

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