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Tragédia em Itaquera. E meu desespero para entrar ao vivo no SBT

Por Luíz Galvão

 

Ainda me lembro como se fosse hoje. Destroços do choque entre dois trens e os pedaços de 58  corpos espalhados pela linha, além dos mais de 150 feridos.

Essa  tragédia aconteceu em fevereiro de 1987, próximo da estação Itaquera, na zona leste de São Paulo. É considerado o maior acidente ferroviário em números de vítimas fatais do Brasil. Ambas as composições  carregavam milhares de passageiros cada uma. As causas ainda são desconhecidas.

Com poucos meses como repórter dos telejornais Noticentro e Cidade 4 do SBT, foi a cobertura mais indigesta, no sentido exato da palavra, que fiz em minha vida. Tive ânsia de vômito, taquicardia, tremedeira pelo corpo, lágrimas e manchas de sangue nas minhas roupas.

E a pergunta que sempre se fez na nossa profissão: um jornalista deve ser “frio”, não demonstrar nenhuma emoção, ao entrar ao vivo durante o telejornal numa situação como esta? A polêmica sobre ser “frio” (estilo da Globo) ou deixar transparecer toda a comoção que se instala dentro de um repórter ao vivenciar uma tragédia como aquela . O fato é que cheguei ao local depois de um desgastante e terrível percurso correndo, inclusive,  risco de morte.

Tudo começou naquela tarde de fevereiro de 1987, quando estava na redação sem nenhuma matéria para fazer.  Eram três horas. O jornalismo tem dessas coisas. Tudo está calmo, mas, de repente, surge algo imprevisível.

A rádio-escuta flagrou no radinho espião ( sintonizava as conversas da polícia e dos bombeiros) o desespero de um policial chamando reforço para uma tragédia numa determinada região leste da cidade. Sem mais nenhum detalhe. Não se sabia onde exatamente. A chefia de reportagem, composta pelos jornalistas Clóvis Santos e Heitor Rodini (já falecido), apoiados pelo pauteiro Simão Zygband, não perdeu tempo. Pediram para eu ir me arrumando rápido, pegando o paletó, pois, se desse tudo desse certo, iria entrar ao vivo no telejornal das 19 horas. Afinal de contas, “matéria boa” é a que se concretiza, mas também precisa chegar a tempo de ser editada e entrar no ar. No SBT, naquela época, tudo era um tremendo desafio.

Com a notícia do acidente, toda a equipe ficou em polvorosa. As entradas ao vivo no telejornal eram muito recentes na emissora. Toda a operação ainda era muito complexa com os equipamentos recentemente adquiridos pelo jornalismo. O motoboy Fred, um boliviano muito louco,  seguiu atrás da equipe para pegar a fita com imagens  gravadas e voltar o mais rápido possível à emissora.  A TVS, a TV do Sílvio Santos, não tinha ainda bons equipamentos e a viatura de reportagem era uma perua Kombi velha e usada.

Não lembro do nome do repórter cinematográfico que foi comigo na cobertura. O  motorista era o Coquinho, que de diminutivo não tinha nada. Era um sujeito forte e um às no volante.  E não perdia uma oportunidade para provar que era tão bom quanto Nelson Piquet, personagem imprescindível para o jornalismo.

E lá fomos nós, da Vila Guilherme, na zona norte para Itaquera, na zona leste, atravessando velozmente a cidade. Não havia rádio comunicador na Kombi, não tinha então como me comunicar com a chefia. Tive a ideia de levar um radinho para ouvir as notícias sobre o acidente e assim descobrir o local exato onde havia ocorrido a tragédia.

O caminho até Itaquera era pela avenida Aricanduva que, quando chovia, o córrego transbordava. Alagamentos eram comuns na região. Coquinho dirigia a perua em alta velocidade.  Pensei comigo: agora só falta chover. E choveu. Muito. O céu logo escureceu.  Vi  raios, ouvi trovões. Caiu um baita dilúvio. A pista logo ficou com poças que pareciam pequenos lagos. Coquinho não estava nem aí, passávamos nos cruzamentos alagados, a perua balançava para lá e para cá. Parecia uma lancha. Eu rezava com as duas mãos agarradas no “puta que pariu”.

O Fred, motoqueiro, que vinha atrás, às vezes sumia nas poças para logo depois, com um sorriso meio satânico, de como quem sobreviveu ao inferno, aparecer na minha janela acenando positivo.

Passando por uma dessas poças, vimos ao mesmo tempo uma linda vã, toda platinada, da Globo, com o repórter Fábio Pannunzio e equipe dando “tchauzinhos” com sorrizinhos para nós. Parecia que estavam navegando num barco a vela e nós num barquinho. Aí a coisa endoidou para o Coquinho, que se sentiu humilhado. Não admitia a derrota e ser tripudiando pelos colegas. Acelerou mais e gritava “Vou matar um boi, vou matar um boi”. Meus nervos já estavam à flor da pele e quase me borrei de medo.

Enfim chegamos ao local do acidente. Estacionamos próximo de onde havia acontecido o choque de trens, por causa do congestionamento e seguimos o resto do percurso a pé. Cerca de 200 metros de distância. Vi de longe que havia ocorrido a colisão de dois trens, e dois vagões subiram com ferros retorcidos  e abraçados nas alturas. Bombeiros socorriam as vítimas em  macas de madeira e pano improvisada. Só enxergava isso do lado que estava.  O choque que tive veio depois ao atravessar para o outro lado da linha. A cena que vi foi desesperadora, pavorosa, horripilante, aterradora, mal tenho palavras para descrever.

Corpos mutilados, pedaços de pessoas espalhados por todas os lados. Um bombeiro com um saco preto de lixo recolhia parte de braços, pernas, mãos, cabeça. Senti cheiro de chuva, sangue e ferro. Um cheiro inesquecível. Senti tontura, quase vomitei. Me deu uma tremedeira e  pânico. Fique paralisado. Parecia um pesadelo.

 O cinegrafista me empurrava pelas costas e dizia: vai lá.  Você não é repórter? Precisa encarar”. Encarei sem olhar para o chão, pulando o que nem queria ver. Entrevistei um sargento dos bombeiros que estava dentro das ferragens do vagão. Vi atrás dele, entre os ferros, o braço de uma mulher morta pendendo pra fora.  Que sufoco. Não conseguia falar. Minhas calças estavam sujas de sangue.

Já gravara imagens e uma entrevista. Mas precisava fechar a matéria e esperar pelo link.  Tentei diversas vezes gravar um stand up, um boletim fechado. Não conseguia. Tremia muito. A voz saia embargada,  gaguejava, ou falava alto demais, suava frio, cheguei a chorar. Mal conseguia colocar o maldito broche com o número quatro na lapela, no paletó. Éramos obrigados a aparecer com ele. Era do canal 4, o da emissora.

Mesmo assim, gravei uma passagem quase que gritando e com uma cara horrível. O motoqueiro Fred pegou a fita e se mandou voando para a redação para dar tempo de entrar no jornal. Não queria fazer o ao vivo. O link chegou tarde e não conseguiu fechar do local. Agradeci a Deus. Era impossível entrar ao vivo no jornal sob o impacto que eu tinha tido. Mas a fita com a minha matéria chegou a tempo de ir ao ar, depois de uma polêmica que dividiu os jornalistas da redação.

Uns amaram minha matéria comovido,  apavorado com o que mostrava, bem  emocionado, voz embargada, sentindo o que qualquer ser humano sentiria.

Os que não gostaram dela alegavam que um repórter tinha que ser frio, cobrindo o que fosse com serenidade, não demonstrando emoção. Que o padrão da Globo, totalmente frio e impessoal, era o correto.

Para mim o mais importante mesmo foi que a matéria entrou no Jornal. Matéria boa é a que vai pro ar. E esta foi, com o grande esforço de toda a equipe. Recebeu, inclusive, parabenização do chefe do departamento, João Bourke. Este era o jornalismo de garra nos primórdios do SBT

Acidente de trens na zona Leste

Luiz Galvão foi repórter, chefe de reportagem e editor nas principais emissoras de TV de São Paulo.

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