Relato de quem sofreu: a ‘covid leve’ não é tão leve assim. A farsa sobre a recuperação total

Por Vinicius Serpa Araújo

 

Independentemente dos contorcionismos retóricos, muitos dos recuperados são, na realidade, sobreviventes; e os dados brasileiros são nada menos do que catastróficos. A falta de seriedade na gestão da pandemia, para dizer o mínimo, nos fez – e faz – pagar um preço mais alto do que a média global.

 

Os recuperados da covid-19 são maioria. Só no Estado de São Paulo, pessoas que tiveram sintomas leves somadas às que sobreviveram mesmo depois de hospitalizadas estão na casa dos 96%, ou 4.153.071 até aqui. É o número que o governo federal gostaria de divulgar e atualizar desde o início da pandemia. Acontece que ele é uma farsa: mostra que a circulação da doença não foi controlada como deveria.

O vírus teve passe livre para matar quase 600 mil brasileiros enquanto escrevo este texto; só em São Paulo foram 147.236 vidas perdidas. Isso não pode ser considerado boa política pública em canto nenhum.

Outro ponto menos abordado, mas igualmente importante, é que esses cidadãos não estão recuperados. A covid-19 deixa sequelas por onde passa, algumas já mapeadas e outras ainda em análise.

Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) indica que 60% dos pacientes com covid-19 no ano passado estão em condições de saúde semelhantes ao da alta hospitalar. Ou seja, mesmo depois um ano, as consequências da covid são sentidas por mais da metade da população.

A “covid longa” também foi alvo de estudo comunidade científica virtual Patient-Led Research Collaborative (PLCR). Dos 3.762 pacientes analisados com essa vertente da doença, 77% apresentavam fadiga depois de seis meses, 72% tinham mal-estar depois de fazer esforço, 55% disfunção cognitiva e 36% das mulheres apresentaram problemas no ciclo menstrual. Voltar a trabalhar ou realizar atividades domésticas virou desafio.

Já uma meta-análise de 215 estudos sobre a doença, feita por Jonathan Rogers, pesquisador da University College London, constatou que sintomas preocupantes como os neurológicos e psiquiátricos são a regra da covid-19, e não a sua exceção como se imaginava inicialmente.

E isso vale para casos leves e graves – os mais comuns encontrados foram a perda do olfato (43%), fraqueza (40%), fadiga (38%), perda do paladar (37%), dor muscular (25%), depressão (23%), dor de cabeça (21%) e ansiedade (16%).

Dito isso, recentemente me enquadrei na estatística publicitária feita pelo governo federal: tive covid-19, os sintomas foram leves e posso dizer que me recuperei.

Nesse período, conclui que mesmo os casos ditos leves não são tão leves assim. Dores de cabeça, febre e dores ao respirar foram constantes e fortes por, ao menos, cinco dias no auge da doença. Dormia em média três horas por noite, tamanho o mal-estar, e não sentia cheiro algum. O paladar também foi afetado, embora menos.

O pior não foi nada disso, mas a carga emocional de estar com covid-19: e se meu caso escalar e a situação piorar? E se eu apresentar algum sintoma raro? E se eu infectei alguém da família, amigos ou até estranhos, sem saber que estava doente?

Em meio a tantos “se”, compreendo que estou no campo dos que têm sorte. O que deve se concretizar é que o meu caso, somado ao de muitos outros brasileiros, em breve deve estar em uma plaquinha de “vidas salvas” pelo governo. Este que, na prática, nada fez para impedir o cenário.

Independentemente dos contorcionismos retóricos, muitos dos recuperados são, na realidade, sobreviventes; e os dados brasileiros são nada menos do que catastróficos. A falta de seriedade na gestão da pandemia, para dizer o mínimo, nos fez – e faz – pagar um preço mais alto do que a média global.

 

Vinicius Serpa Araújo tem 26 anos e é Relações Públicas

 

Matéria publicada originalmente no link abaixo:

https://bemblogado.com.br/site/sarau-delivery-ana-do-chorinho-com-o-presente-de-sivuca-a-velha-guarda-e-pixinguinha/

 

Contribuição para o Construir Resistência ->

Resposta de 0

  1. Só quem teve sabe o que é esse tal sintoma leve, esse governo facista e genocida não dez nada para combater a propagação do vírus. A juventude tem que reagir e ir pras ruas protestar e dizer a este sem noção o que é democracia de verdade. Belo texto parabéns.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *