Episódios de violência e racismo numa cidade que já foi maravilhosa
Por Sonia Castro Lopes
O Rio de Janeiro há muito tempo deixou de ser aquilo que os poetas e os bairristas se orgulhavam em nomear “cidade maravilhosa.” Paisagem linda, praias e montanhas irresistíveis, mas como diz a piada “vai ver a gentinha que colocaram lá…” Violência, intolerância e racismo comandam mentes e corações anestesiados pelo ódio e tranquilizados pela impunidade.
Terra de milicianos – daí o apoio e a expressiva votação do ex-capitão por aqui – a cidade se transformou numa terra sem lei onde esses criminosos atuam de forma descarada, explorando o trabalho de pobres desempregados, imigrantes, mulheres e até de crianças. Sim, temos escravidão nos dias de hoje com direito ao não recebimento de salário e açoite até a morte, caso não cumpram sua parte no “acordo.”
O Rio de Janeiro revela talvez como nenhuma outra cidade brasileira as marcas de nossa estrutura social escravista, elitista e racista. Considerada o “coração do Brasil” para o bem e para o mal, abriga um tipo de violência naturalizada pelos neofascistas que exercem sua liderança na terra dos Bolsonaros. Polícia que mata e se acumplicia aos marginais, milícia que explora e tortura. Ou seja, adotou-se por aqui a barbárie como estilo de vida.
O congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi uma das recentes vítimas desse desatino, espancado até a morte por ter ido cobrar as diárias de trabalho realizado num quiosque situado na Barra da Tijuca, condado do fascista que colocaram no Planalto. Diante da repercussão que o caso tomou, a Prefeitura do Rio resolveu cassar a concessão do quiosque que era “propriedade” de um policial militar e transferí-la para a família do jovem assassinado. “Não à banalização da barbárie” postou o indignado prefeito, Eduardo Paes. E ainda decidiu transformar os quiosques Biruta e Tropicália em memorial para homenagear a cultura africana. É culpa que chama, né?
Neste sábado (5) cheio de sol e calor como apreciam cariocas e turistas que ainda enchem as praias do Rio, manifestantes foram ao local do crime cobrar justiça e lutar contra o racismo. Vale observar que o quiosque onde o crime aconteceu, assim como outros similares, encontra-se totalmente irregular tanto em termos de permissão para o funcionamento, quanto em relação à legislação trabalhista e às normas sanitárias.
Os assassinos – Aleson Oliveira Fonseca, Brendon Alexander da Silva e Fabio Pirineus da Silva que atendem pelos apelidos de Dezenove, Totta e Belo, respectivamente – foram presos devendo responder por homicídio duplamente qualificado com impossibilidade de defesa da vítima e uso de meio cruel. Cínicos, negaram a intenção de matar bem como o fato de terem sido movidos por racismo ou xenofobia, mas foi comprovado que dois deles têm várias passagens pela polícia por crimes de extorsão, corrupção de menores e porte ilegal de armas. Normal aqui na terra das milícias. Torturam, matam e ainda negam a autoria do dolo, afirmando estar com a “consciência tranquila.”
Do outro lado da baía, no município de São Gonçalo, a 40 minutos do Rio, outro crime bárbaro. Desta vez, um chefe de família de 37 anos, Durval Teófilo Filho, perdeu a vida porque foi confundido pelo vizinho, o militar Aurelio Alves Bezerra, com um assaltante. Aurelio atirou três vezes em Durval por suspeitar que ele estivesse armado e, dessa forma, pensava estar agindo em ‘legítima defesa.’ Suspeitaria se Durval fosse um homem branco? Duvido! Consumaria o crime se não andasse armado? Óbvio que não!
Esses e outros crimes que acontecem diuturnamente contra moradores de comunidades e periferias, em sua maioria pretos, são banalizados porque a violência no país se tornou algo natural. Expurgam-se os pretos, os favelados, os imigrantes pobres, os que reivindicam melhores condições de vida e de trabalho. O ódio ao que é diferente, o racismo estrutural, a intolerância, tudo isso somado à facilidade de comprar armas e ao exemplo que vem “de cima” está transformando o país “cordial” e “abençoado por Deus” (não se diz por aí que Deus é brasileiro?) num verdadeiro holocausto tropical. Até quando?
Manifestação realizada hoje (5/2) na orla da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, contra a violência e racismo tendo como motivo a morte brutal do jovem Moïse. Foto: Reprodução Portal Eu, Rio!
Ato Justiça para Moïse, hoje (5/2) na Avenida Paulista – São Paulo. Fotos: @fotografia.75
Durval Teófilo Filho, chefe de família barbaramente assassinado em São Gonçalo, Rio de Janeiro, essa semana.Foto: Reprodução Jornal Extra