Por Mouzar Benedito

A tragédia que se abateu sobre parte do litoral norte de São Paulo, no município de São Sebastião, principalmente na Barra do Sahy, onde morreram muitas pessoas, me trouxe várias lembranças. Vou falar um pouco delas aqui, talvez com um pouco de saudosismo (inclusive pela idade que não me permite mais certas aventuras), lamentando muito a morte dessas pessoas e a destruição de belos lugares.
A primeira coisa que me lembrei foi da repórter e o fotógrafo do jornal O Estado de S. Paulo agredidos por burgueses da praia de Maresias, acusando-os de “comunistas” (trabalhando naquele jornal pra lá de direitista?!). Não queriam que registrassem os estragos causados pelas chuvas. Talvez porque isso desvalorize seus imóveis caríssimos. Para eles vale mais o imóvel do que as vítimas humanas, não é?
Quando chegaram à Vila Sahy, ex-Vila Baiana, onde moradores muitos (pobres) morreram e muitos mais ficaram desabrigados, os jornalistas foram recebidos com água e alimentos, pelos sobreviventes.
Dessa história me lembrei de algo que não tem nada a ver com a região, quando trabalhava na Secretaria da Cultura, no governo de Izalene Tiene (vice de Toninho do PT, assassinado). A gente promovia na plataforma da Estação Cultura, uma grande estação ferroviária que já não funcionava mais, pois acabaram os trens de passageiros, shows gratuitos para a população. Todos os finais de tarde de domingo tinha um show aberto por músicos de Campinas, muito bons, seguidos por artistas famosos. Gente como Jamelão, Maria Rita, Tom Zé, Ângela Maria… Quatro a cinco mil pessoas iam a esses shows, e nunca houve um episódio de violência ou agressão.
Pois bem, nessa época, a cantora Maria Rita foi se apresentar no Jockey Club, com ingressos caros, e no meio do show uns homens começaram a gritar “gostosa” e outras coisas em tom ofensivo. Ela parou de cantar e falou mais ou menos isso: “Há pouco tempo vim a Campinas me apresentar para um público enorme, com entrada grátis, e fui muito respeitada, agora vim me apresentar num ambiente de ricos…”.
Isso, para mim, representa um padrão de comportamento de uma boa parcela da burguesia brasileira, imbecil e ofensiva.
Entre os moradores ricos ou não do litoral norte paulista, há muita gente boa, que se relaciona muito bem, com a população mais pobre, com respeito e solidariedade. Não comparo a essa burguesia fedorenta. Alguns, nessa tragédia, deram todo apoio às vítimas, hospedando e alimentando vários deles. Solidários de verdade! Critico não esses, mas os babacas como os agressores dos jornalistas.
Lugar para ricos tem que ter pobre para servir
Meu pensamento volta para um tempo mais distante, quando só se chegava a Guarujá de balsa. Quando decidiram construir uma rodovia – a Piaçaguera-Guarujá, concluída em 1970 – os proprietários dos imóveis caros não queriam que isso acontecesse: se facilitasse o acesso à cidade, ela ia se encher de pobres.
Muitos desses proprietários, que só os ocupavam em períodos de férias ou feriados prolongados, levavam empregadas domésticas para lá, pois a madame ou o senhor rico não ia cozinhar, lavar pratos e roupas… E voltavam com elas.
Já havia uns moradores ricos permanentes em Guarujá, e nessa época começou a aumentar o número deles. E aí as empregadas levavam suas famílias, claro que não para morar com os patrões, mas em moradias improvisadas um pouco distante das praias. E os homens dessas famílias fariam alguns serviços também, como mecânicos, jardineiros, seguranças ou seja o que fosse. Daí surgiram esses bairros sem infraestrutura, cheios de riscos.
Praias isoladas
Eram muitas, começo pela primeira que frequentei… No meu tempo de faculdade, cursando Geografia, a gente já ia a uma praia onde não se chegava de carro, Iporanga, na ilha de Guarujá, entre essa cidade e o canal de Bertioga. Era uma praia lindíssima, com apenas um morador, o pescador Sabino, que ocupava uma casa bem simples, num extremo da praia, e se tornou nosso amigo.
Um amigo, Mário Manzano, tinha uma Kombi que usava para entregas de uma fabriqueta do pai dele e às, vezes, saíamos nela com mais alguns amigos, sexta-feira por volta das 11h da noite, quando terminavam as aulas, e seguíamos para lá. Já havia uma estradinha entre Guarujá e Bertioga, e íamos por ela até chegar ao início de um caminho para continuar a pé até a praia.
Encostávamos a Kombi ali e seguíamos andando mais ou menos um quilômetro e meio, levando pequenas barracas, um pouco de arroz e poucas coisas mais. Nem passava pela cabeça que alguém poderia roubar a Kombi, isso não acontecia.
Logo na chegada da praia, tinha uma cachoeira a uns 50 metros do mar, ótima para tomar banho, e eu a usava muito, pois, branquelo, não suporto a água salgada no corpo e ia me banhar cada vez que entrava no mar. E eu entrava bastante. Umas pedras eram cheias de mariscos. Íamos até elas levando um balde e colhíamos mariscos para cozinhar com arroz. Eu entregava o balde para alguém e me enfiava debaixo da cachoeira. Tinha uma mina d’água ótima bem pertinho, e nós usávamos essa água para beber e cozinhar. Sal? Um pouco de água do mar, bem limpa.
O que aconteceu com essa praia? Teoricamente, era propriedade da Marinha, e não poderia ser ocupada por condomínios, mas foi: um condomínio de ricos. Praticamente privatizaram a praia que passou a ser “proibida” para nós.
Gaiolas e gamelas
Em 1976 já existia a rodovia Rio-Santos, inaugurada no ano anterior, facilitando a grilagem, a “compra” enganosa de áreas pertencentes a posseiros, pescadores ou outros moradores pobres, que foram praticamente expulsos da área ou convertidos em mão de obra barata. Mas ainda restavam muitas comunidades tradicionais, de pescadores chamados “caiçaras”. Nessa época, o Sesc começou a valorizar a cultura popular brasileira, e eu trabalhava nisso. Fizemos duas Feiras Nacionais de Cultura Popular e algumas unidades do Sesc tinham lojinhas para vender artesanato, a preços acessíveis, procurando valorizar o trabalho dos artesãos. No Sesc de Bertioga mesmo foi montada uma dessas lojinhas.
A gente comprava artesanato direto do artesão, pagando um preço muito mais justo do que eles estavam acostumados a receber, e uma das áreas que me foram destinadas para pesquisa e compra era todo o litoral paulista. Já tinha a rodovia, repito, passando encostada a um conjunto de seis ou sete casas do lado direito de quem seguia rumo ao norte, e isso era o povoado de Barra do Sahy. Do povoado rumo à praia, era a mata, com algumas casas de pescadores e de artesãos no meio das árvores. Um desses artesãos fazia gamela, e eu comprava dele, pagando mais do que cobrava normalmente, mas alertando: pago mais porque essas gamelas vão mais para decorar moradia de ricos, você tem que se comprometer a vender gamelas por preços normais aos moradores das redondezas, que as usam como vasilhas.
A praia da Baleia só tinha um morador, que era pescador e fazia gaiolas para vender. Com ele, fiz um trato: quero TODAS as gaiolas. “Você finge que parou de fazer essas coisas, que a cada mês eu venho aqui e compro todas, por um bom preço”. Ele topou, e eu gostei, pois aquelas gaiolas seriam usadas como decoração em casas de São Paulo, e não como prisão de passarinhos.
Caminhando pela areia…
Um amigo e colega de faculdade, o Américo, criado em Ubatuba quando não havia a estrada litorânea, tinha o hábito de caminhar pelas praias entre um povoado e outro. Uma época passou a caminhar desde a praia de Boraceia até São Sebastião.
Um dia, um outro colega, o João Medeiros, que tinha um espírito aventureiro, achou que dava para acompanhar o Américo numa jornada dessas. Saíram antes de amanhecer, com uma pequena e leve mochila, e levando um cantil cada um saíram rumo ao norte.
Quase meio-dia, o Medeiros não aguentava mais, quase se arrastava. Aí viram a uns duzentos metros uma casinha com duas portas. Só podia ser uma venda. E era. O Américo confirmou, e o Medeiro ganhou fôlego para andar acelerado até ela. Já entrou na venda pedindo alto: “Sai uma cerveja bem gelada…”. Nem se lembrou que não tinha luz elétrica ali, portanto, nenhuma geladeira. O dono da venda olhou pra ele meio com cara de brabo e falou: “Se ocê quisé perfumaria vai na cidade. Aqui nóis só vende pinga”.

Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos.