Filho de capitão

Por Silvio Queiroz

Desde quando me entendo por gente, meu pai era oficial do Exército. Na infância, uma das identidades que eu tinha era de filho do capitão Queiroz. Nasci no fim de 1962. Na época, ele conspirava contra o Jango, afinado com o pai, que se reformou como general.

A coisa de ser filho de um oficial, na ditadura, tinha alguma coisa de diferente. Dava pra perceber que o Exército “impunha respeito”, por assim dizer. Teve época até em que um diretor da Antarctica, o comendador Bittar, mandava cerveja e refrigerante em casa nas festas de fim de ano.

Acho que a primeira noção que tive sobre o que acontecia foi ali por abril de 70. Foi quando o DOI-Codi do Rio, se não me engano, arrancou sob tortura a informação de que o capitão Carlos Lamarca dirigia um campo de treinamento de guerrilha no Vale do Ribeira, no extremo sul de SP.

Até ali, com 7 anos, eu tinha um registro vago daquele nome Lamarca: eu sabia que era um capitão, como meu pai, e que tinha largado o Exército para virar “terrorista”. Em algum momento, quis saber o que era “terrorista”. Inclusive porque tinha placas mandando andar devagar com o carro na frente dos quartéis, como aquele onde às vezes minha mãe ia com a gente buscar o papai. Era por causa dos “terroristas”, que passavam metralhando as guaritas.

Quando o se descobriu a pista do Lamarca, o DOI de SP mandou pro Ribeira uma equipe de buscas, que encontrou um sítio aparentemente abandonado. Mais tortura no Rio, e alguém explicou que o sítio abandonado era só cobertura – a área de treinamento ficava mais pro fundo da mata. Aí, mandaram da masmorra da Rua Tutoia outra equipe, com reforço de munição.

Meu pai foi nessa, na viatura da vanguarda do comboio. Saíram de madrugada, e na chegada a Registro aconteceu um acidente. Um caminhão de banana, que ia no sentido oposto, atravessou a pista e bateu de frente com a viatura onde meu pai viajava. Era uma daquelas veraneios C-14 pretas do DOI-Codi. Ele ficou desacordado, preso na ferragem, e a viatura pegando fogo, cheia de munição. Quase iam deixando, achando que tava morto, mas acabaram tirando na marra. A Veraneio explodiu uns minutos depois.

Além de saber que tinha batido na trave de perder meu pai, eu sabia que isso se relacionava com o tal Lamarca. Mas foi só um tempo depois que pude juntar as peças. Em outubro de 75, quando Vladimir Herzog foi assassinado sob tortura no porão da Tutoia, meu pai já não vivia com a gente. Nem em SP – tinha ido pro Amazonas, transferido, e ali se fixou, com nova família.

Nessa altura, minha mãe me contou que ele tinha servido no DOI-Codi. E ali, com quase 13 anos, eu já entendia que o Brasil esta sob uma ditadura militar. Que tinha matado o Vlado e inventado a mentira do suicídio. Foi quando eu comecei a decidir ser jornalista.

Dali pra frente, tomei consciência de que existia um buraco na vida do meu pai, o período entre 69 e 73, em que ele serviu na Oban e depois DOI-Codi. Subordinado ao então major Carlos Alberto Bilhante Ustra. Lá pra 78, eu começava a militância secundarista e a imprensa alternativa publicou a primeira lista de torturadores montada entre presos políticos, advogados e a campanha pela anistia. Participando dela, conheci ex-presos que tinham sobrevivido ao DOI da Tutoia.

Nenhuma lista, nem nenhum sobrevivente, citou meu pai entre os torturadores. Ninguém reconheceu as fotos dele que pude mostrar. Mesmo assim, sei que ele esteve lá, e sabia – melhor do que qualquer um de nós – o que acontecia nas salas de interrogatório que ele, talvez, não tenha frequentado. Sei que ele integrou várias vezes o Conselho de Justiça da Auditoria Militar da Brigadeiro Luis Antonio, onde muitos combatentes foram condenados – a Dilma, inclusive.

Tudo isso tá na colcha de retalhos da minha infância, visto pelos olhos de um menino que sempre quis ser visto parecido com o pai – e todos me viam “a cara da mãe”. Teve um tempo, soube depois pela minha mãe, em que um soldado da PE era quem dirigia o nosso fusquinha velho, levava e buscava entre a casa, a escola, o Sesc, onde a mamãe trabalhava, e o quartel.

Bem depois, ela me explicou que isso era medida de segurança. Como também me contou que ficava aflita quando uma daquelas C-14 pretas encostava na porta de casa, em hora incerta, pra buscar o papai. Foi numa dessas que ele embarcou pro Ribeira e por muito pouco não morreu lá. Quem morreu, ano e meio depois, foi o Lamarca, fuzilado indefeso no sertão da Bahia. Lembro do papai lá em casa, contando pra vizinhos e amigos como tinha sido. Direitinho como li, depois, no livro do Emiliano José e do Oldack Miranda.

Desde que formei minha consciência política, na segunda metade dos 70, fui tratando de recompor esse mosaico de uma infância vendo a ditadura pela intimidade. De um ângulo oposto ao da maioria dos amigos que fiz ao longo dessa jornada.

A curiosidade que mais tarde me faria jornalista, mais o afeto profundo por um pai de quem sempre senti falta, produziram essa memória singular. Compartilhar é oferecer, aos mais jovens como aos que se recordam pela perspectiva da resistência, uma observação igualmente pessoal e emotiva, mas por um ângulo – acho – bem menos conhecido.
Silvio Queiroz é jornalista, nascido em SP e radicado desde 2004 em Brasília, onde publica aos sábados a coluna #ConexãoDiplomática, no #CorreioBraziliense. Hoje, aos 58 anos, integra a Coordenação-Geral do #SindicatodosJornalistasProfissionais do Distrito Federal (SJPDF). Iniciado na vida partidária em 1979, no #PartidoComunistadoBrasil (PCdoB), milita atualmente no #PT, na tendência interna Articulação de Esquerda.

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