Construir Resistência
Sonia Castro Lopes

A falácia do ensino técnico no Brasil

Por Sonia Castro Lopes

 

Existe um saudosismo que beira a ignorância quando pseudo-especialistas se propõem a falar sobre educação no Brasil. Tenho lido entrevistas assustadoras, especialmente as proferidas por aquele tipo cenográfico, o dublê de pastor e ministro. Verdadeiro desserviço à educação brasileira o que este governo e seus asseclas estão fazendo. Sem o devido conhecimento de pesquisas científicas que se traduzem em dados importantes para a implementação de políticas educacionais bem sucedidas, chafurdam na lama nostálgica de tempos em que cantar hinos, decorar rios da Amazônia, resolver equações e repetir as histórias dos vencedores era sinal de que a educação no país ia muito bem, obrigada. Pelo que entendi, para eles, a educação desandou “de uns trinta anos para cá”, coincidentemente com o fim da ditadura civil-militar. Alguém precisa lembrar aos leigos ou aos “esquecidos” que foi justamente  nessa época fatídica que se produziu o verdadeiro desmonte da educação nacional quando, ao menos no setor público, os danos parecem ter sido irreversíveis. Falaremos hoje sobre o ensino técnico, tão propalado nos discursos e plataformas eleitorais, visto como um antídoto para os males educacionais do país.

 

Em primeiro lugar, é preciso pensar a educação de forma contextualizada. Educação no Brasil sempre foi obra de /para as elites. Mesmo quando se inaugurou uma nova fase republicana na qual se incluíram as categorias populares no processo educativo, a elas só restava o “bom ensino primário” do tempo de nossos avós e, em seguida, as escolas profissionais, já que o ensino  secundário propedêutico e o superior eram reservados aos filhos da elite, os futuros quadros político-administrativos dos quais o país não podia prescindir. Havia um dualismo autêntico, legitimado por uma legislação de ensino excludente e hierárquica. Para os filhos dos patrões escola secundária e universidade, para as “classes menos favorecidas” (transcrição literal da lei), a escola primária e os cursos profissionais nas modalidades agrícola, comercial ou industrial.

 

A expansão da escola primária, contudo, acarretou a demanda pela escola secundária e, aos poucos, a universidade se abria para os filhos das classes populares. Era preciso conter essa gente. Criou-se uma lei que transformaria a educação brasileira de forma irremediável. Um ensino fundamental de oito anos (na época primeiro grau) e um ciclo de três anos compulsoriamente profissionalizante (segundo grau). Essa lei é de 1971 (Lei n. 5692/71), editada no auge da ditadura civil-militar. E o paradigma a seguir não era o das boas escolas técnicas – os minguados CEFETs disputados a tapa por uma classe média que queria os filhos no mercado de trabalho, mas não abria mão dos títulos de doutor.

 

Foi aí que o ensino técnico fez água. ‘Especialistas’ logo apareceram para questionar a validade de um ensino caro que servia como trampolim para alçar os filhos dos populares à universidade. A idéia de acabar com os cursos propedêuticos (clássico e científico) tornando todo o segundo grau profissionalizante era uma forma de conter a procura de vagas nos cursos superiores, como observou Luiz Antonio Cunha em obras clássicas sobre o assunto (1). Era preciso nivelar por baixo. O modelo das boas escolas técnicas não podia ser aplicado a toda rede escolar pública. O discurso do governo era que os jovens já sairiam do segundo grau com uma habilitação profissional e se engajariam num mercado de trabalho que crescia graças ao “milagre econômico” que ocorria no país, oferecendo empregos e salários cada vez melhores.

 

Ledo engano. Enquanto as escolas privadas passaram a “cumprir a lei” oferecendo uma profissionalização “de mentira” e reforçando o currículo propedêutico para que os filhos das classes privilegiadas garantissem aprovação nos vestibulares dos cursos mais prestigiados, as classes populares tinham de se conformar com a profissionalização “meia bomba” realizada nas escolas da rede pública. Sem investimentos na qualificação do corpo docente, na infraestrutura, no planejamento junto às empresas teoricamente beneficiadas pelo “milagre”, esse modelo escolar fracassou. Ainda que em 1982 essa profissionalização deixasse de ser compulsória, o modelo se perpetuou até a publicação da nova lei de ensino que data de 1996 (LDBEN n. 9394/96). E, de certa forma, se perpetua ainda hoje, na medida em que os discursos políticos propugnam por mais escolas dessa natureza, mas que tipo de ensino técnico se deseja implantar e disseminar pelo país? Qual seria o modelo ideal?

 

A atual LDBEN (1996) trouxe várias mudanças. O primeiro grau transformou-se em ensino fundamental de 9 anos (desde 2006) e o segundo grau voltou a denominar-se ensino médio, agora bifurcado em formação geral e ensino médio técnico, havendo possibilidades de integração entre as duas modalidades. Algumas ações foram realizadas para articular as duas modalidades de ensino médio, ainda assim insuficientes, visto que uma perfeita integração demanda recursos para manter um currículo que possibilite uma boa formação profissional sem descurar do caráter humanista e isso só seria possível se pensarmos em escolas de tempo integral com professores experientes e bolsas para alunos carentes, haja vista que grande parte do público atendido pelo ensino médio precisa trabalhar para sobreviver.

 

Algumas experiências exitosas nos apontam o caminho, mas recursos vultosos teriam que ser investidos nesse projeto de escola única, próxima ao modelo idealizado por Gramsci – os centros unitários de cultura (2). Como os recursos vêm prioritariamente do Banco Mundial, esse modelo de escola dificilmente teria condições de ser implementada em larga escala. Será que os saudosistas encastelados no MEC estariam dispostos a rever e modificar o modelo de ensino profissional que se cristalizou no país nos tempos da ditadura civil-militar? Claro que não. Estão preocupados com escolas cívico-militares que agradam aos eleitores, “cidadãos de bem” ordeiros e conservadores. Ao povo pobre, o rebotalho.

 

 

Notas da autora

(1) CUNHA, L. A. A profissionalização fracassada. In CUNHA & GOIS, M. de. O golpe na educação. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002. Ver ainda CUNHA, L. A. A profissionalização do ensino médio. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974.

(2) GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere, vol.2, 2. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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