Construir Resistência
Foto: divulgação

Utopia e distopia na minissérie Years and Years

Por: Francisco José Nunes

Análise sem spoiler!

A minissérie #YearsandYears (BBC/HBO – 2019), criada por Russell T. Davies, causou muito impacto porque, segundo muitos comentários, pegou pesado com o uso da distopia. Os seis episódios da minissérie acompanham a vida da família Lyon por 15 anos.

Tudo começa em uma noite crucial, em 2019. Os principais membros da família são: Muriel Deacon (Anne Reid) é a matriarca da família, uma avó devotada, faz críticas perspicazes sobre o cotidiano; Stephen Lyons (Rory Kinnear) é o filho mais velho, mora numa linda casa em Barnsbury (Londres), é casado com Celeste, pai de duas garotas (Bethany e Ruby), tem uma ótima condição financeira, é calmo, sorridente e comporta-se como o pacificador; Celeste Bisme-Lyons (T’Nia Miller) é casada com Stephen, é contabilista, moderna, inteligente, estilosa, mãe de Bethany e de Ruby.

Também fazem parte da família Lyons: Daniel Lyons (Russell Tovey) o terceiro filho, trabalha no Departamento de  Habitação da Prefeitura de Manchester, é casado com Ralph (Dino Fetscher) que é professor do ensino fundamental; Rosie Lyons (Ruth Madeley) é a mais jovem das Lyons, é cadeirante, nasceu com espinha bífida (defeito congênito na medula espinhal), mãe solteira de Lee e Lincoln, de dois pais diferentes, trabalha como chef de cozinha numa escola local, é muito divertida; Edith Lyons (Jessica Hynes) é a segunda filha, é ativista e internacionalista da causa ambiental, viajou bastante pelo mundo; Bethany Bisme-Lyons (Lydia West) é a filha mais velha de Stephen e Celeste, é uma aluna brilhante, tímida, obcecada por transumanismo, implantou um telefone na mão e pretende fazer upload da sua consciência para a nuvem.

A personagem que não pertence à família Lyons, mas que influencia muito a vida familiar e a sociedade britânica é Vivienne Rook (Emma Thompson). Ela é uma empresária que entra nas disputas políticas como uma representante da extrema-direita. Faz declarações absurdas, mas que com o tempo vão sendo normalizadas. Através de várias eleições vai galgando o poder até se transformar numa governante poderosa e fascista.

Para refletir sobre as questões colocadas pela série é inevitável mencionar o governo da Primeira-Ministra Margaret Thatcher e a sua herança maldita. Ela exerceu o poder no Reino Unido entre 1979 e 1990. Combateu o chamado “Estado de Bem Estar Social”, política econômica de Estado, implantada no pós-guerra, que buscava garantir o acesso às necessidades básicas para todas as pessoas.

Por outro lado, ela impôs a política econômica do Liberalismo, reduzindo a ação do Estado nas áreas estratégicas da sociedade (saúde, educação, energia, transporte, abastecimento, moradia). Introduzindo as famosas privatizações. A sua filosofia política está bem resumida nesta declaração:

“Não existe isso que chamam de sociedade. Existem indivíduos, homens e mulheres, e existem famílias. E o Governo só pode agir através das pessoas, mas são as pessoas que devem zelar por seu próprio interesse. Todos devemos cuidar de nós mesmos, e depois, também, de nossos vizinhos”.

Esta declaração, infelizmente, soou como música para muitos ouvidos. Ela estimula absurdamente o individualismo. Na prática, Thatcher atacou os sindicatos, os partidos políticos e todas as formas de organização social. Isolar as pessoas é a melhor forma para dominá-las.

Ao assumir o poder, Thatcher pegou o Reino Unido com uma inflação de 25% e uma taxa de desemprego de 17%. Mas tirou proveito desta situação para implantar as malfadadas “políticas de austeridade”.

Na condição de principal representante do conservadorismo, suas bandeiras eram “a família e a segurança”. Sua grande batalha inicial foi contra os sindicatos, principalmente o sindicato dos mineiros. Que ela venceu na base da pressão econômica e da repressão policial. Simultaneamente ela desqualificou os partidos políticos, principalmente o Partido Trabalhista. 

No plano social, Thatcher: interrompeu o programa de moradias populares, isso prejudicou muito a juventude, porque os jovens ficaram sem opções para sair da casa de seus pais; fez inúmeras terceirizações no sistema de saúde NHS (o SUS britânico); apoiou a famigerada lei conhecida por “Seção 28”, que proibia as escolas de “promover o ensino da aceitabilidade da homossexualidade”, essa lei vigorou entre 1988 e 2003; dentre outras malvadezas.

Após 11 anos no poder o saldo foi o seguinte: para uma líder política que “defendia a família e a segurança”, a taxa de divórcio aumentou 11%; o número de roubos aumentou 53% e de crimes em geral aumentou 34%; o número de famílias monoparentais aumentou acentuadamente. Provavelmente, a causa dessa hecatombe social encontra-se na política econômica adotada: que provocou desindustrialização; redução dos direitos trabalhistas e sociais; e, aumentou o abismo entre os mais ricos e os mais pobres.

Este breve panorama do Governo Thatcher facilita a compreensão dos dilemas colocados pela série Years and Years. Não se trata de dizer que Vivienne Rook seja uma sósia de Margaret Thatcher, Vivi “herdou” o estado de terra arrasada deixado pelas políticas de Thatcher. Os políticos de direita, depois que fracassam, abrem caminho para o fascismo.

Logo no primeiro episódio Vivienne diz: “Eu não entendo mais o mundo. Antes esquerda era esquerda, direita era direita, os EUA eram os EUA”. Essa tática dos políticos de extrema direita é típica. Criar confusão no sentido das definições. Mas, infelizmente, essa declaração tem grande aceitação popular. 

Considerando que a maioria das pessoas se recusa a assumir as responsabilidades necessárias para viver em sociedade. Isto é, para viver em sociedade é preciso: dedicação ao estudo dos problemas e das soluções propostas; participação nos debates e nas decisões; enfrentamento dos conflitos e da pressão dos mais poderosos.

Infelizmente, a maioria das pessoas prefere ficar omissas, “neutras”, não querem “polarizar”. Resultado: a sociedade afunda, entra em decadência.

A série Years and Years coloca um turbilhão de problemas para serem enfrentados: a devastação ambiental, o abismo entre ricos e pobres, a precarização das condições de trabalho, as crises econômicas, o negacionismo, o terraplanismo, a causa dos refugiados e imigrantes, a homofobia, a xenofobia, entre outras. Neste sentido, a série apresenta um mundo distópico. Entretanto, a própria série indaga:

“Pode uma família comum mudar o mundo?”. É na tentativa de dar a resposta que a série termina. Isto é, buscando refazer a boa e velha utopia política, na luta por um mundo melhor.

Utopia e distopia

A disputa entre utopia e distopia foi muito acirrada no Século XX e continua agora no Século XXI. O termo utopia compreendido aqui enquanto desejo de uma sociedade ideal, perfeita. Neste caso, é inevitável citar o texto do cineasta argentino Fernando Birri:

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.

A distopia, por sua vez, significa “um país infeliz”, “um lugar doente, ruim, desfavorável”. Daí entendermos o sucesso atual das séries, filmes e livros distópicos.

Depois da eleição do Trump a venda de livros sobre distopia aumentou muito. Porque as pessoas queriam entender o que estava acontecendo. Diante da falência da “democracia burguesa”, com todos os seus problemas, temos pela frente uma grande avenida para caminharmos rumo à construção de uma sociedade fraterna, solidária, participativa, equânime, ecológica e “perfeita”.

Foto: divulgação

Autor:

Francisco José Nunes

Mestre em Ciências Sociais – PUC-SP; Graduado em Filosofia; Professor na Faculdade Paulista de Comunicação – FPAC. 

Para saber mais sobre o Governo Thatcher:

Artigo: “Não, Thatcher não salvou a economia”, Andrew Kersley

https://jacobin.com.br/2021/01/nao-thatcher-nao-salvou-a-economia/

 

Compartilhar:

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email

Matérias Relacionadas

Rolar para cima