Trabalho informacional, pejotização, precarização: um novo regime de acumulação

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Por Marcos Dantas

 

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Já desde o século passado, uma vasta literatura, incluindo autores pro-
gressistas (exemplos: Manuel Castells, Alain Touraine, Gilberto Dupas,
este brasileiro) ou vinculados à tradição marxista (exemplos: David Har-
vey, Jean Lojkine, Marcos Dantas, este que aqui assina) vêm mostrando, com dados empíricos e análise teórica, estarem as relações capital-trabalho passando por profundas transformações derivadas da emergência de um novo regime de acumulação, sucessor do “fordismo” dominante durante a maior parte do século XX.

Infelizmente, as repercussões desse debate raramente ultrapassaram os limites dos campi acadêmicos. Em termos de reais programas políticos, com força para influenciar os rumos da nova realidade, nada se fez, além das lulistas políticas compensatórias inspiradas pelo Banco Mundial. Continuava-se agindo, política e praticamente, como se ainda estivéssemos no mundo do trabalho dos
anos 1950 ou 1960 ou, considerando os sucessivos assim ditos “retrocessos”, a eles pudéssemos retornar, para isto bastando o poder ser assumido por um governo antineoliberal…
Subitamente, durante a pandemia do Covid-19, as ruas foram invadidas por milhares de homens e mulheres montados em motocicletas ou bicicletas, carregando nas costas mochilas exibindo a marca iFood.
Parece que só então descobriu-se uma realidade que, porém, já estava crescendo aceleradamente à nossa volta desde o século passado: as relações precárias de trabalho. É típico de anos recentes? É próprio só dos trabalhadores pobres? Não.

Há muito tempo, boa parte dos jornalistas,publicitários, artistas em geral e outras categorias profissionais de clas-
se média só conseguem empregos, até relativamente estáveis, na con-
dição de “PJ”, isto é, na condição de “pessoas jurídicas”.

Em dezembro
de 2006, isto é, no Governo Lula, a “pejotização” do trabalho já avançara tanto que foi legitimada pela lei complementar 123/2006: esta criou
uma nova categoria especial de trabalhadores, justo o “por conta pró-
pria”, definido como microempreendedor individual, ou MEI.
O que estamos testemunhando hoje em dia, sob rótulos como “uberização”, “trabalho digital” e similares nada mais é que a continuada expansão e aprofundamento daquele processo que David Harvey conceituou como acumulação flexível.

Sob o “pacto fordista”, como explicavam
os “regulacionistas” franceses (Michel Aglietta, Alain Lipietz, Benjamin
Coriat etc.), patrões e empregados aceitavam acordos (contratos) periodicamente renováveis que estabeleciam horários e salários fixos, prêmios e benefícios cabíveis, também circunstanciais punições, tudo sob
fiscalização dos sindicatos de trabalhadores, fiadores dos acordos.

Era um sistema “rígido” que funcionou virtuosamente durante os “gloriosos
30 anos” do pós-guerra, mas tornou-se uma barreira aos ajustes necessários, do ponto de vista do capital, para responder à grande crise kondratieviana dos anos 1970.
Este é o ponto. Aquele modelo, como tudo o mais que sustentara a recuperação pós-Guerra, chegara ao seu limite. A saída para a crise exigia um novo modelo econômico e social, para cuja construção os porta-vozes políticos e acadêmicos do capital demonstraram competência política, teórica e ideológica, enquanto que as lideranças social-democratas (que expressariam os interesses do trabalho) pareciam não saber o que fazer e acabaram se rendendo ao “consenso liberal” imposto por aqueles.

Na “acumulação flexível”, aquelas relações contratuais anteriores foram substituídas por laços não submetidos aos limites de algum contrato formal e coletivo de trabalho. As grandes corporações capitalistas seguiram retendo em seus núcleos duros de produção de valor os perfis de trabalho essenciais para projeto e desenho de seus produtos ou serviços, estratégias de mercado, gestão financeira. Tudo o mais que fosse trabalho acessório ou complementar, elas passaram a subcontratar a empresas especializadas. Se a corporação, por exemplo, tinha um departamento de imprensa, demitia os seus empregados e passava a contratar essa atividade a uma empresa especializada em relações com a
imprensa.

E se precisava transformar seus projetos de produto em produtos concretos (quase todas precisam), ao invés de comandar diretamente uma fábrica, contratava essa específica fase do processo de produção (e valorização) a uma empresa industrial especializada.

Conhecemos grandes empresas que não fabricam absolutamente nada, no
entanto são entendidas como empresas industriais: Nike, Apple… Em janeiro último, ficamos sabendo, após um avião Boeing 737 Max perder parte de sua fuselagem em pleno voo, que de Boeing o avião só tem a marca: a fuselagem, isto é, o corpo inteiro do avião, o avião propriamente dito, é fabricada por uma empresa terceirizada.
A assim chamada terceirização não atinge apenas as camadas mais vulneráveis da força de trabalho. Certamente, uma empresa que fabrica fuselagem de avião não tem só operários pouco qualificados, aliás não deve ter nenhum: tem que ter engenheiros(as), técnicos(as) de nível mé-
dio, operários(as) com formação do tipo do nosso Senai.

Só não tem a mesma responsabilidade com a qualidade e segurança que teria a própria Boeing, cuja marca, porém, é fortemente abalada em caso de aciden-
tes como esses. Mas cujos dirigentes, por sua vez, estão mais preocupados com os resultados a serem apresentados ao mercado financeiro do que com a segurança de seus passageiros, conforme mostra o documentário “Queda livre: a tragédia do caso Boeing”, em exibição no Netflix.
A lógica de todo esse processo, em sua essência, podemos entender a partir do Livro 2 d’O Capital. Está em questão a redução dos tempos de rotação do capital: quanto menor esse tempo, maior o número de rotações por unidade de produto, logo multiplicação do mais-valor por unidade de tempo.

Daí todo um investimento em intensificar os tempos de trabalho na produção, desde a era “fordista”; em aprimorar os meios de transporte e de comunicações (da telegrafia, telefonia e radiodifusão à
atual internet); na obsolescência programada (forçando acelerada subs-
tituição de produtos pelo consumidor); etc. A acumulação flexível é uma
nova etapa do capitalismo, ou uma nova etapa no movimento histórico
de “anulação do espaço pelo tempo” (Marx).

Essa lógica levou o trabalho a ser cada vez mais afastado dos processos concretos de transformação da matéria, entregues a máquinas mecânicas hoje em dia altamente automatizadas ou robotizadas.

Ao mesmo tempo, o trabalho vivo passou a se concentrar em atividades de busca,
processamento, registro, comunicação de informação, nas quais se encontram tanto cientistas, engenheiros(as), demais profissionais de formação superior, quanto operários(as) no chão de fábrica controlando suas máquinas através de instrumentos de medição, alavancas e botões.
Desde os anos 1960, a maior parte dos postos de trabalho se encontrava naqueles setores que os economistas denominam serviços, embora alguns, mais atentos, já identificavam como informacionais (Marc Porat,
Fritz Machlup). Trata-se de setores diretamente relacionados aos proces-
sos produtivos (P&D, engenharia, marketing) ou que, por suas caracterís-
ticas próprias, mesmo que indiretamente relacionados, são também produtores de valor, no sentido marxiano do conceito, a exemplo das assim chamadas indústrias culturais.
Na medida em que deslocou o trabalho para as atividades informacionais, o capital também desenvolveu novas tecnologias de tratamento e comunicação de informação, para isso investindo em uma nova base técnica: o digital. Essa base técnica, intensivamente disseminada
a partir e por causa da crise kondratieviana dos anos 1970, hoje está
presente em todos os poros da nossa sociedade, nas mãos ou bolsos de cada indivíduo. O digital não é causa da flexibilização ou fragmentação
do trabalho. É solução encontrada pelo capital, em cujo desenvolvimento e evolução o seu Estado e suas grandes corporações investiram pesadamente, para avançar novas relações de produção e de consumo, cuja causa está na própria lógica de acumulação, nesta nova etapa.
Se no geral, as relações desse trabalho informacional hoje se encontram sob diferentes níveis de flexibilização e fragmentação, das mais “agradáveis” como as praticadas nos meios artísticos, desportivos, outros segmentos de classes médias, às mais «sofridas», como as “uberizadas”, pouco sabemos da real subjetividade dessa nova e nada unitária ou padronizada classe trabalhadora fragmentada.

Como não é a consciência dos homens (e mulheres) que determina seus modos de pensar, mas seu ser social que determina sua consciência, desconhecemos que ser social é esse.

Aparentemente, as camadas mais bem situadas tendem a ter “cabeças” mais pro-
gressistas, enquanto que as camadas mais exploradas e oprimidas tendem para posições obscurantistas e reacionárias, sob forte influência pentecostal: os tais “pobres de direita”. As agendas, porém, em ambos os casos, estão menos preocupadas com temas econômicos do que com diferenças culturais e comportamentais, donde as políticas neoliberais, inclusive as que
aprofundam as desigualdades sociais, são pouco questionadas.

Daí que o 13 | TRABALHO discurso necessariamente progressista das esquerdas se choca com o reacionarismo desses “pobres” – palavra, aliás, de significado vago, mais para solidariedade religiosa do que para rigoroso conceito científico sociológico. Estes constituem o precariado, uma nova camada social de trabalhadores subalternos que sobrevive material e subjetivamente nos limiares do
lumpensinato, com o qual, aliás, se mistura espacial e culturalmente nas
nossas periferias urbanas.

Ainda nos falta um grande programa que seja capaz de articular e aliar tais diferentes camadas de trabalhadores, dos
melhores ao piores aquinhoados, no enfrentamento da crise do capitalismo e sua superação, em oposição à alternativa obscurantista e fascista que vem se apresentando com cada vez mais força e violência.

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Marcos Dantas é professor titular (aposentado) da UFRJ. Doutor em Engenharia de Produção pela
Coppe-UFRJ, é professor do PPG em Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ e do PPG em Ciência da Informação da ECO-IBICT/UFRJ. Integra os Conselhos de Administração da Finep e do NIC.Br. É sócio e já foi diretor do Centro Internacional Celso Furtado,
também sócio da ULEPICC-Br, ESOCITE e Intercom. É autor de A lógica do capital-
informação (Contraponto) e O valor da informação (Boitempo), este em coautoria.

Artigo reproduzido da revista do Conselho.Regional de Economia (Corecon)

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