Por Virgilio Almansur
A vergonha que me invade chega a ser superior a que vivi nos momentos seguintes à morte de Marielle. Lá, colegas próximos banalizaram a vida que prometeram honrar num juramento que testemunhei junto a Hipócrates e que a hipocrisia desmontou. Hoje, um jovem colega imita Eichmann numa Jerusalém brasiliense, tornando uma prática quase sacra numa banalidade sem igual.
O espírito reinante no cerne e entorno que domina os desdobramentos da CPI-COVID, traz elementos inspirados nos porões recentes herdados da corja que tiranizou o país por vinte e um anos. Apregoa-se cada vez mais a inspiração-ustra com uma naturalidade de invejar Arendt no seu “A Banalidade do Mal”; se no nazismo tínhamos cumpridores de ordens pela hierarquia advinda de Hitler, hoje temos sequazes oriundos dessa formação truculenta que reinou sob as hostes militares de perfil destrutivo, tanático.
A insignificância da vida para um colega que assume com a naturalidade trair preceitos, burocratizando sinistramente a morte — eleva-a ao conceito funéreo trágico, cuja prática mais se aproxima do hediondo, incitando o horror.
Tenebrosas sensações advieram do depoente médico que informou a modificação dos códigos por nós usados (Código Internacional de Doenças–CID) na classificação de patologias; a cada estado de saúde é atribuída uma categoria única à qual corresponde um código CID e este é tido e havido como norte nos procedimentos médicos.
As alterações assumidas pelo profissional se aproxima — e muito! — às mesmas adotadas pelos governos militares na ocultação de cadáveres. Está ali, na fala desse lamentável colega, a frieza adotada por brilhante ustra quando se comunicava com familiares e distorcia os fatos assistidos nos porões macabros. Imperava a adulteração das ocorrências e a morte quedava intransitivamente pelos escaninhos dessa burocracia funérea.
Mais trágica ainda será essa comissão parlamentar testemunhar o mesmo a que há pouco assistimos na promoção do condenado ustra (único, por sinal…) laureado pelas vergonhosas forças armadas em recente ato oficial, esfregando-nos na cara que o crime compensa.
Compensa, pois, forjar resultados, uma vez que os números hospitalares atestam lucros. Se os herdeiros de ustra podem hoje lucrar sob o beneplácito do inglório exército, atestando sua condição de herói (exatamente nas palavras do indisciplinado vice do arruaceiro vagabundo), não será impensável que nosso Conselho maior não venha passar as mãos na cabeça desse e outros colegas que tenham estado — ou estão! — na linha de produção morticínia.
A espontânea manifestação de um negacionismo crônico, antepõe práticas escusas onde a precocidade de um tratamento pode ter contribuído aos assassinatos precoces em larga escala.
Triste constatar que a exposição daqueles que não mais aqui estão venha contribuir para que uma linha de raciocínio criminoso esteja agora sob os holofotes da nação. Parte dela, no entanto, adotará o mesmo cinismo do filho que esconde suas maracutaias e visa o lucro na ocultação dos procedimentos sofridos pela mãe.
Está aí algo mais sério que é buscar na sanha bandida das mentes cloroquinadas, a similar produção, em ritmo laboratorial, do lucro fácil que se obteve a partir daqueles que investiram no remédio milagroso que as forças armadas abraçaram.
No laboratório 64/85, a tortura era o remédio sob encomenda. Hoje, no laboratório do exército, o precioso medicamento é a enriquecedora cloroquina. Sob inúmeras indagações, “o Centro de Comunicação Social do Exército informa que o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx) produziu cloroquina em atendimento às demandas do Ministério da Defesa e do Ministério da Saúde”.
Defesa e MS… Generais, coronéis, capitães, sargentos! Tudo a ver… Essa gentalha se esquece que muitos não se esquecem. A tortura, à época, emprendida e metodotizada, não atingiu apenas presos políticos. Ela também corrompeu, forjou, adulterou e gerou fraudes elevando uma rede de colaboradores da repressão. No judiciário, juízes aceitaram processos absurdos e impensáveis; confissões desmentidas e perícias mentirosas, eram a norma!
E claro… Nossos colegas médicos fraudaram autópsias, fazendo vista grossa às marcas da tortura em pacientes. Corpo de delito era ignorado. Práticas similares as encontramos, então? Um governo corrupto na essência que ainda carrega em seu DNA, não só a corrupção, mas a tortura. E o perigo está na junção desses elementos em que a tortura velada associada à corrupção torna intocável a bandidagem. As promoções que o digam…
Talvez ainda assistamos mais mortes e a ampliação de gabinetes assassinos, verdadeiros consultórios voltados ao crime como sofisticação dos esquadrões da morte mafiosos à proteção do empresario que lucra no crime. A inspiração 64/85 está no âmago dessa carnificina que tem apoio de parte considerável do empresariado.
Lembremos de Fleury, capitão Ailton Guimarães Jorge e asseclas. Serviram ao regime como Ustra. Assassinos! Os dois primeiros foram condecorados com a Medalha do Pacificador. Reconhecidos pelos pares das forças armadas como bandidos, mas com notáveis serviços à causa. À época, ao regime… Regime que está aí fabricando heróis.
Virgilio Almansur é médico, advogado e escritor.