Qual é a senha?

Por Sonia Castro Lopes

Tenho horror a senhas. Não consigo memorizá-las, confundo-me, bloqueio as operações, sou obrigada a fazer tudo de novo; enfim, vivo um calvário.  Já não sei quantas senhas tive que bolar para conseguir acessar Iphone, Ipad, computadores, net, wi-fi, skype, bancos, investimentos, lojas, revistas científicas, contracheques, afora todas as redes sociais das quais participo. Costumava me gabar da “memória de elefante” que possuía, mas com tamanha demanda está ficando cada vez mais difícil.

As coisas pioraram quando tive um de meus emails invadidos e a conta do Instagram roubada. Por possuir muitas senhas repetidas, entrei em pânico. O pior é que não tinha mais imaginação… Já utilizei aniversário de filhos, mãe, pai, avós, irmãos, sobrinhos, datas de casamentos, divórcios, obituários… Haja memória! No final já apelava para os animaizinhos de estimação e ficava histérica quando, ao digitar uma nova senha, apareciam as mensagens “fraca”, “média”. Um horror! Houve um momento em que não conseguia guardar mais nada de cor e preferia declarar “esqueci a senha” para começar do zero. Mas com bancos e investimentos é páreo duro. Bloqueiam mesmo e, na maioria das vezes, fazem você se deslocar até lá, falar com gerente, digitar a maldita um montão de vezes…

Foi então que resolvi anotar tudo em uma caderneta. Tudo separadinho por categorias, tendo o cuidado de não colocar explicitamente a senha e, sempre que possível, aludir às datas comemorativas. A caderneta vivia trancada numa gaveta a chave e dali só era retirada em casos de necessidade. Após utilizá-la, voltava para o esconderijo. Um dia, ao voltar das compras resolvi “limpar” a bolsa. Saía tanto papel, nota fiscal, comprovantes de pagamentos de cartão de crédito, receituários, propaganda de rua e mais um monte de tralhas. A mesa do escritório ficou repleta de papéis que coloquei num saco e joguei na lixeira.

Horas depois me vejo às voltas com uma nova solicitação. Já é cadastrada? Digite login e senha. Ai meu c…..! Qual é a senha? Voei em direção à gaveta-esconderijo e, para meu desespero, a caderneta não estava lá. Meu Deus! Onde está a bendita? Vasculhei gavetas, estantes, o escritório inteiro. Revistei a sala, os quartos, o banheiro, a cozinha e nada… De repente, o insight! A caderneta deveria estar em cima da escrivaninha sob toda a papelada que saíra da minha bolsa e, sem reparar, joguei tudo fora. Reconstituí mentalmente o passo a passo. Sim, foi isso, só pode ter sido assim…

Lancei-me desesperada para a portaria do prédio e pedi socorro ao zelador de plantão. Onde está o lixo, Josivaldo? Preciso recuperar algo valioso que joguei fora sem querer! Nessa altura eu já estava aos prantos despertando a solidariedade do bravo funcionário. “A senhora está com sorte dona Sophia, o lixo ainda está na garagem e só será recolhido à noite.” E o pobre coitado, deixou todos os afazeres e pôs-se a desembrulhar saco por saco. Meu prédio tem nove andares e quatro apartamentos por andar. Levando-se em conta que até àquela hora do dia cada apartamento deveria ter lançado à lixeira uma média de dois ou três pacotes de dejetos, imaginem a quantidade a ser examinada. Num dado momento ele me disse que não podia deixar a portaria desguarnecida e, num rompante, pedi que me deixasse ficar ali. Eu mesma ia revirar todo aquele lixo até encontrar o precioso objeto. Fui em casa, me enrolei num avental plástico, coloquei touca, luvas, galochas, máscaras e mandei ver. Em cada saco uma esperança, mas nada da caderneta. Quando o serviço na portaria arrefecia, Josivaldo voltava pra me dar uma moral. E assim ficamos por duas longas horas.

Aos prantos, voltei pra casa tentando relembrar outros possíveis destinos do mísero livreto. Mas nada me ocorria e eu num desespero total. Só restava uma saída, tentar registrar outras senhas naquela interminável lista que me tiranizava a exigir sempre login e senha.  Aos bancos eu iria no dia seguinte, paciência. Tomei um longo banho para me livrar de tantas impurezas e sentei-me em frente ao computador. Quando olhei para a impressora que fica ao lado, vi sob a bandeja o pedacinho de um objeto de cor azul com a foto de um pé gigantesco. Sim, amigos, era a reprodução do Abaporu, de Tarsila do Amaral, que eu havia adquirido no Museu Malba de Buenos Aires e que, por coincidência, vinha a ser a capa do minúsculo caderno que continha todos os segredos da minha vida. Ria e chorava ao mesmo tempo e tão contente fiquei que nem lembrei dos três pulinhos em homenagem a São Longuinho, o protetor das coisas perdidas.  Minha vida estava salva, que felicidade!

Mas, e agora? Como ia explicar ao Josivaldo que a caderneta fora encontrada? Já tenho fama de desligada, um tanto maluquete, embora “do bem.” Justamente por isso talvez tenha angariado a empatia e solidariedade do porteiro que demonstrara tanto empenho em me ajudar naquela difícil missão. Dia seguinte, passo pela portaria e nos entreolhamos  absolutamente cúmplices. E aí, dona Sophia, que chato, né? Pois é, Josivaldo, tive um trabalhão e nem sei se ainda vou ter maiores problemas. Para reforçar o drama acrescentei: “Imagine se alguém achou, pegou minha caderneta e está de posse das minhas senhas? Cancelei todos os cartões e vou correndo ao banco para registrar outras.” Josivaldo, coitado, dirigiu-me um olhar tão compungido que até hoje não tenho coragem de encará-lo. Mas acho que o importante nessas horas é não perder a pose.

Sonia Castro Lopes

Sonia Castro Lopes é professora  da UFRJ, co-editora do Construir Resistência e  cronista nas horas vagas

Contribuição para o Construir Resistência ->

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *