O padrinho: como Lula juntou Guilherme Boulos e Marta Suplicy na mesma chapa

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Por Pedro Venceslau – revista Piauí

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Uma das lideranças do PT em São Paulo e coordenador do plano de governo da pré-campanha de Guilherme Boulos (Psol-SP) à prefeitura, o deputado estadual Antonio Donato aproveitou uma viagem a Brasília no dia 30 de outubro do ano passado para visitar a amiga Clara Ant no gabinete dela no terceiro andar do Palácio do Planalto, onde atua como assessora especial de apoio ao processo decisório do gabinete pessoal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Os dois estavam no fim do café, quando o chefe de gabinete presidencial, o sociólogo Marco Aurélio Ribeiro, conhecido como Marcola, entrou na sala: “Você quer falar com o Lula? Se quiser eu te encaixo na agenda”, disse Marcola, para a surpresa de Donato. O deputado então logo cruzou o corredor e foi se encontrar com o presidente. Ouviu pela primeira vez uma ideia que mais tarde se tornaria o grande fato político daquele fim de ano.

“Foi uma surpresa quando ele me falou da Marta voltar ao PT e ser vice do Boulos”, contou Donato. No bate-papo informal que não constou da agenda oficial, o deputado paulista, que foi chefe de gabinete de Marta Suplicy na prefeitura, ouviu com atenção o cálculo de Lula: o peso da máquina vai influenciar a campanha em favor de Nunes de maneira mais potente na periferia, onde os eleitores são pragmáticos e costumam votar em quem tem experiência administrativa.

“A Marta empresta ao Boulos algo que ele não tem: experiência no Executivo. Lula está muito preocupado com São Paulo”, diz Donato. Ficou claro também que não haveria grande resistência do PT ao retorno de Marta. Além disso, pesquisas internas mostram que o eleitorado, em sua maioria, sequer sabe que ela deixou o partido.

O deputado Guilherme Boulos havia sido chamado por Lula em seu gabinete uma semana antes. Foi o marco zero da articulação. Lula ouviu do líder do MTST um parecer cordial: que ficaria confortável com a escolha do PT fosse ela qual fosse, mas que considerava Marta um excelente nome. A essa altura, a ex-prefeita já tinha sido sondada pelo deputado federal Rui Falcão, que manteve a informação em segredo até dos aliados e amigos mais próximos.

Segundo um interlocutor de Márcio Toledo, marido de Marta, o casal já tinha até se reunido com Lula em Brasília no começo de outubro dentro da chamada “agenda laranja”. Ou seja: a conversa é programada com o chefe de gabinete, que leva o convidado até o gabinete do presidente sem deixar registros oficiais.

Dias depois, já no mês de novembro, o tema surgiu em outra reunião em Brasília, essa no gabinete do ministro-chefe da Secretaria de Comunicação, Paulo Pimenta. Rui Falcão e o colega Carlos Zarattini (PT-SP) estavam lá para tratar de outras agendas com o ministro, quando Pimenta comentou que Lula estava ventilando a ideia de trazer Marta de volta ao partido e fazê-la vice na chapa de Boulos. Falcão não esperava que o assunto já estivesse circulando.

Os relatos sobre o início da construção da chapa Boulos-Marta mostram o mesmo padrão da construção da dobradinha Lula-Alckmin, que deixou a direita perplexa e a esquerda confusa em 2022. Um petista resume bem o esquema tático: depois de concluir as primeiras sondagens, o presidente faz o assunto circular para ver o quão estranha ela parece, então vai ampliando o círculo de tráfego da ideia para sentir as reações até que sente firmeza e dá os primeiros passos concretos para seguir adiante.

O passo seguinte, no caso, foi incumbir Rui Falcão de fazer as primeiras tratativas para reunir Marta e Boulos, enquanto Donato e os petistas da capital fariam as primeiras conversas formais com o Psol.

Antes de Lula deflagrar seu movimento de retorno ao PT, Marta não descartava embarcar no projeto de reeleição do prefeito Ricardo Nunes (MDB), que chegou a cogitar o nome dela como sua vice com o aval de Valdemar Costa Neto, presidente do PL.

Em uma conversa com o prefeito e Edson Aparecido, secretário de governo, Marta foi questionada sobre aproximação e respondeu que tinha recebido um telefonema do dirigente do PL. “Ela disse na ocasião que não tinha sentido ir para o PL e que o vice deveria ser de outro partido”, contou Aparecido.

Um marqueteiro com passagem por algumas das principais campanhas do Brasil na última década relatou à piauí que em setembro do ano passado foi chamado pelo empresário Márcio Toledo, marido e principal interlocutor de Marta, para um almoço no escritório do empresário.

Toledo, ele conta, estava empenhado na pré-campanha de Nunes e se dizia preocupado com a estratégia de comunicação do prefeito, pelo qual a população ainda passa bem longe de morrer de amores. O marqueteiro fez uma análise semelhante à de Lula sobre a contribuição de Marta, mas em um outro contexto, sobre como ela poderia ser útil como vice do político do MDB: “O prefeito vai enfrentar um candidato que não tem entregas tangíveis. Boulos por sua vez vai enfrentar um cara que é o Maluf da cidade e vai fazer muitas entregas em 2024.”

A ex-prefeita, portanto, “emprestaria” a Nunes o seu legado, sendo os Centros Educacionais Unificados (os CEUs) o carro chefe. Aquela “experiência administrativa” que interessou também a Lula.

Esse mesmo marqueteiro esteve novamente com Toledo em Brasília em meados de novembro, quando a articulação já tinha vazado. Na conversa, o publicitário foi questionado sobre como a notícia seria recebida e como deveria ser a resposta de Marta. “Trate disso como se fosse uma convocação de Deus”, orientou. Procurados, Boulos, Marta e Nunes não concederam entrevista.

Nesta quarta-feira, Nunes declarou em entrevista ao UOL News: “Fiquei muito chateado. Minha esposa até chorou. A gente não esperava. Era um trabalho de três anos com uma relação de proximidade. Todas as estratégias nunca foram escondidas e sempre foram tratadas com muita transparência.”

O presidente durante evento no dia 18 de janeiro: as pontes com Marta nunca foram implodidas

 

Apesar de ter deixado o PT fazendo críticas duras ao governo em 2015 e apoiado o impeachment de Dilma Rousseff (PT), Marta Suplicy nunca implodiu pontes com Lula. O primeiro gesto foi feito em fevereiro de 2017, quando a ex-prefeita se dirigiu ao hospital Sírio Libanês para visitá-lo depois da morte da então primeira-dama, Marisa Letícia.

A visita foi articulada pelo advogado Marco Aurélio Carvalho, amigo de Marta e próximo a Lula. O clima, diante dos apoiadores de Lula presentes, foi de constrangimento. Segundo os relatos de petistas, Marta enfrentou um “corredor polonês”: silêncio e olhares congelantes no ar, ainda que ninguém tenha sido descortês ou grosseiro. Ex-aliado e ex-secretário de governo de Marta na prefeitura, Rui Falcão estava de costas quando ela chegou. Virou-se e fez um cumprimento seco, curto e formal.

Em outubro de 2019, Marta fez um segundo gesto de reaproximação ao enviar uma carta ao petista na prisão, que chegou por intermédio do deputado Emídio de Souza. A ex-prefeita ressaltou a “forte amizade” entre eles. Lula ficou “comovido” com o texto, segundo interlocutores.

Cerca de um mês depois, entrevistei Marta para o jornal O Estado de S. Paulo, em seu amplo apartamento nos Jardins, com vista panorâmica para a cidade. Ela disse que Lula era um “preso político”, fez uma autocrítica sobre a saída do PT e a ida para o MDB e defendeu a articulação de uma frente ampla para enfrentar o bolsonarismo em 2020 na disputa pela capital. Na eleição municipal daquele ano, porém, Marta se engajou na campanha de Bruno Covas (PSDB) à reeleição e enfrentou do outro lado uma chapa pura do Psol, com Boulos e Luiza Erundina.

Em plena pandemia, Marta foi às ruas na periferia em um veículo adaptado que ficou conhecido como “Martamóvel”, em defesa da chapa de Covas, que tinha Ricardo Nunes como vice. Nas entrevistas coletivas ao lado da ex-prefeita, Covas exaltava o legado de Marta e celebrava a boa avaliação da gestão dela, que foi de 2001 a 2004.

“O segundo é o governo Mário Covas. Nós vamos visitar as áreas de Grajaú e Parelheiros, onde ela é muito querida. É um apoio que muito me honra”, afirmou o prefeito na ocasião. O PT em 2020 apostou na candidatura de Jilmar Tatto e teve o pior desempenho de sua história, com 8,6% dos votos. Sem o partido no páreo, a polarização se deu entre Boulos e Covas. Também ex-prefeita pelo PT, a deputada Luiza Erundina subiu o tom contra Marta ao também fazer campanha em um veículo adaptado.

“Enquanto estou aqui no calor do Cata Voto, ela imitou a gente. Imitou não, pois está num caminhão, com ar-condicionado, com sofá de couro”, afirmou Erundina em um comício na Zona Norte, segundo registrou o portal UOL. Já Marta disse nas redes sociais que Erundina havia sido “desleal” ao dizer que ela havia cortado investimentos na educação quando prefeita. Nota de rodapé: quatro anos depois, Erundina emergiu após o anúncio do retorno de Marta ao PT e apareceu nas redes sociais ao lado da deputada Tabata Amaral, pré-candidata do PSB à prefeitura.

A relação entre Marta e Rui Falcão é marcada por idas e vindas. Na eleição presidencial de 2014, os dois tiveram uma conversa dura quando o então presidente nacional do PT se recusou a convocar uma convenção extraordinária para submeter ao voto dos petistas o “volta Lula”. O dirigente alegava que a presidente Dilma Rousseff tinha o “direito” de se reeleger e que o próprio Lula não havia lhe procurado para tratar do assunto. Os dois ficaram estremecidos, mas o rompimento só aconteceu mesmo no ano seguinte, em meio à escalada de críticas de Marta ao segundo governo Dilma e ao PT, que resultou na saída dela da sigla.

A reaproximação aconteceu em 2021 e foi promovida pelo advogado Marco Aurélio Carvalho, coordenador do grupo Prerrogativas e amigo de ambos. Ele organizou um jantar em sua casa com a presença de Rui Falcão, Marta e Márcio Toledo. O cardápio foi comida portuguesa encomendada de um restaurante e a conversa se estendeu noite adentro. Marta e Rui relembraram os tempos de prefeitura, fizeram análises de conjuntura e concordaram sobre a necessidade de se formar uma frente ampla em 2022 para derrotar o bolsonarismo. Depois disso, a ex-prefeita compareceu ao jantar do Prerrogativas no qual Lula se encontrou com Alckmin publicamente pela primeira vez.

O prefeito Ricardo Nunes, seu entorno e a cúpula do MDB duvidaram até o último momento que a ex-prefeita fosse realmente deixar o cargo de secretária de Relações Internacionais para apoiar e ser vice de Boulos.

Interlocutores do prefeito dizem, porém, que Marta se afastou e ficou incomunicável diante da escalada de notícias sobre o caso e que mensagens de Nunes ficaram sem resposta, o que causou um clima de mal-estar.

“Em nenhum momento a Marta veio falar com o Ricardo para tratar do assunto. Ficamos sabendo de tudo pela imprensa. Várias pessoas tentaram falar com ela e não conseguiram”, disse Edson Aparecido.

O contato só foi restabelecido depois que Marta apareceu ao lado de Lula e Rui Falcão em uma audiência pública no Palácio do Planalto. O prefeito decidiu então demitir Marta por quebra de confiança e fez a informação chegar à imprensa. A notícia repercutiu rapidamente, e só então Toledo conversou com um interlocutor do prefeito e marcou uma reunião presencial na prefeitura no dia 9 de janeiro.

Marta já havia redigido uma carta de demissão com a data do dia 10 de janeiro, mas Nunes não quis esperar. Na conversa na prefeitura, foi Toledo quem mais falou. O casal não queria que a saída se desse por uma demissão, mas sim “a pedido”. Ficou acertado um meio-termo: que ela estava saindo “em comum acordo”.

Na conversa, Marta garantiu a Nunes que não iria ataca-lo durante a campanha e argumentou que estava indo embora para unir o campo democrático. Toledo emendou dizendo que a eleição de Boulos seria determinante para a reeleição de Lula em 2026. Ficou claro no diálogo, segundo aliados do prefeito, que o acordo entre Nunes e Bolsonaro, que deve indicar o vice do emedebista, foi o fato que Marta precisava para girar a chave após a primeira abordagem de Lula.

Uma vez fora da prefeitura, Marta articulou então o almoço com Boulos em seu prédio e, uma vez estacionado o Celta, ficou livre para retornar ao partido do qual foi filiada por 33 anos. Na última terça-feira, o PT anunciou que a filiação de Marta acontecerá em evento no dia 2 de fevereiro, com a presença de Lula, de Haddad e de Boulos. “É a volta dos que não foram. Marta saiu do PT, mas o PT nunca saiu de Marta”, diz Marco Aurélio Carvalho.

 

 

Pedro Venceslau é comentarista de política da CNN Brasil. Trabalhou em veículos como a revista Imprensa e o jornal O Estado de S. Paulo

 

 

 

 

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