Duas crônicas que nasceram prontas

Por Airton Gontow – publicado no Sler

Nem sempre o cronista precisa de imaginação ou de um olhar especial para criar histórias. Elas chegam de presente….

Às vezes ocorrem situações com a gente que já são crônicas prontas. Para levá-las ao leitor, não precisamos de um olhar especial “de cronista”. Chegam escancaradas, oferecidas, dizendo “me escreve, me escreve…”. Por isso, basta colocá-las no papel. Ou na tela do computador.

Conto agora duas delas. Ambas, como já disse, estão aqui exatamente como aconteceram, sem uma única intervenção fictícia do cronista.

Mas há uma pequena diferença entre elas. Na segunda história, ocorrida em 85, em Jerusalém, percebi que tinha uma crônica das mãos somente após o ocorrido. Já na primeira, que aconteceu nos anos 90, percebi durante o próprio fato que estava dentro de uma crônica – como naqueles casos em que a gente percebe em meio ao sonho que está sonhando. Por isso, a minha frase final, eu já disse ao taxista pensando que seria uma boa forma de terminar a crônica que um dia escreveria.

Já contei essas histórias em redes sociais e veículos comunitários, mas agora quero dividi-las com você, leitor ou leitora da Sler.

Aconteceu em um Táxi

Dias atrás, entrei em um táxi e aconteceu uma cena muito estranha.

— Para onde é que o rapaz judeu deseja ir?

A pergunta me assustou. Não trago um Hai nem tampouco uma Estrela de David no peito. Meu nariz é pequeno… “Mas como é que ele sabe que sou judeu?”, pensei.

Olhei para o zíper da minha calça. Felizmente, estava fechado.

— Toca para a Paulista, por favor — falei. – Mas, diga-me uma coisa: como é que o senhor descobriu que sou judeu?

— Olhando para você a gente percebe…

– O senhor me desculpe – retruquei. Em primeiro lugar, não existe uma característica padrão para os judeus. Existem judeus de todos os tipos. E mesmo se o senhor estiver se referindo ao estereótipo físico mais conhecido dos judeus: narigudo, sardento, ruivo… eu não sou nada disso. Definitivamente, não tenho cara de judeu!

— Aí é que você se engana. Você tem a cara dos judeus que não se parecem com judeus, devolveu o motorista, que logo contou sua interessante e movimentada história, que teve passagens até pelo Oriente Médio, onde ele serviu como soldado das forças da paz da ONU.

– E foi lá que conheci alguns judeus russos assim como você… que não tem cara de judeu.

O táxi estava chegando ao seu destino e não dava para continuar a conversa. Uma pena.

– Quanto saiu a facada? – perguntei.

— Apenas Cr$ 200 mil – ele respondeu.

Despedi-me interpretando uma velha piada judaica: entreguei uma nota de Cr$ 100 mil.

– Mas são Cr$ 200!!!, afirmou!

Ao que indaguei:

– E o senhor não veio comigo?

Correio Divino

Eu estava em Jerusalém, junto ao Muro das Lamentações, olhando para as pessoas que rezavam ou colocavam nos espaços entre as pedras bilhetinhos com pedidos e agradecimentos a Deus.

– Você também é brasileiro? – perguntou um homem baixo, meio gordinho, aparentando cerca de 45 anos.

Questionei como é que sabia e ele explicou que, horas antes, havia sentado perto de mim em um bar e ouvido quando falei em português com alguns amigos.

– Você fala hebraico? – indagou.

Sua expressão e tom de voz transmitiam mais ansiedade do que vontade de saber se eu era poliglota ou não.

Percebi que outras perguntas viriam a seguir.

Respondi que meu hebraico não era lá grande coisa, mas que dava para o gasto.

Eu estava certo, o sujeito se animou e indagou, quase gritando:

– E escrever, você escreve em hebraico?

Expliquei que meu hebraico escrito era um pouco pior do que o falado, mas que também servia para alguma coisa.

Ele sorriu e, com o rosto radiante, perguntou:

– Então, você me faz um grande favor?

Não tenho por hábito ser precavido, mas decidi manter a cautela e a postura:

– Depende, afirmei.

Sem prestar muita atenção à minha resposta, pediu:

– Você pode traduzir do português para o hebraico este bilhetinho que vou colocar no Muro?

Olhei espantado e questionei:

– Mas por que você não coloca em português mesmo?

Foi aí que escutei uma resposta surpreendente:

– Mas você acha que Ele entende?

Respondi:

– Olha, meu caro. Não sei nem se Ele existe, mas juro para você que, se Ele existir, entende até mesmo a língua do P escrita em braile.

Em todo o caso, para não desapontar o tipo, traduzi o bilhete com o melhor hebraico que pude.

Airton Gontow é jornalista e cronista. Trabalhou em jornais da grande imprensa de São Paulo

Respostas de 2

  1. Muito boas essas crônicas. Ainda mais vindas por intermédio de dois judeus. Parabéns a ambos. Airton e Simão.

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