Como nascem as autocracias

Sonia Castro Lopes

Por Sonia Castro Lopes

De acordo com Levitsky & Ziblatt, autores de Como as democracias morrem (1), há um recuo da democracia em várias partes do mundo. Instituições internacionais de pesquisa que avaliam a qualidade dos regimes democráticos, como a V-DEM (2), apontam que desde o golpe de 2016 a democracia brasileira vem se deteriorando e cada vez mais se aproxima das autocracias instaladas de forma clara em diversos países. Casos clássicos como Turquia, Hungria, Polônia e Índia estão aí para comprovar, embora o caso de Trump nos Estados Unidos tenha sido o mais destacado pela importância do país no cenário econômico e internacional. Por aqui, com o governo Bolsonaro, a autocracia vem ganhando forma devido aos constantes ataques às instituições democráticas e à imprensa de modo geral, gerando justificada preocupação, inclusive pela imagem negativa que o Brasil passou a projetar no exterior.

Não acontecerá aqui o que ocorreu na Tailândia ou em Miamar que sofreram golpes militares tradicionais, mas é possível admitir-se a adesão a um padrão autocrático na medida em que um candidato admirador de modelos autoritários tenha chegado ao poder através do voto. Vivemos uma democracia eleitoral que vem sendo corroída por dentro. Um governo que se diz democrático, mas desqualifica as instituições, hierarquiza os poderes, ataca a imprensa e as instituições acadêmicas e coloca em postos-chave indivíduos muitas vezes incompetentes que não hesitam em blindar o chefe do executivo das acusações feitas por opositores e pela mídia. Formalmente, tais procedimentos são feitos ‘dentro das linhas da Constituição’ como o Presidente gosta de afirmar. O fato é que as instituições internacionais baixaram a nota do Brasil,  dentre as democracias jovens a que possuía os melhores índices em razão do processo de redemocratização ocorrido a partir de 1985, com a liberdade conferida à imprensa, a participação da sociedade civil e os direitos concedidos aos cidadãos pela Constituição Federal promulgada em 1988.

É preciso pensar que a reeleição de um autocrata chancela um regime ditatorial. É como se o ovo da serpente, chocado aos poucos, chegasse a termo e surtisse efeito. Dos ataques e ameaças à frágil democracia, passa-se à ação. Já vivemos uma ditadura, sabemos os estragos que esse regime provoca, mas não conseguiremos evitá-lo se, pela segunda vez, através do voto, nós o ratificarmos. Quero dizer com isso que é preciso estar atento a tudo que acontece e que muitas vezes passa a ser naturalizado como aconteceu durante a campanha presidencial de 2018.

Jair Bolsonaro passou quase 30 anos no ostracismo enquanto deputado federal. Legislava para poucos apoiadores, em sua maioria militares de baixa patente. Ao defender o combate à corrupção e acenar com reformas privatizantes conseguiu a adesão da elite. Mas a elite brasileira não ultrapassa 5% da população, por isso a pauta que realmente contribuiu para sua eleição foi o apelo à moralização dos costumes. A grande massa de eleitores de Bolsonaro embarcou nas fake news e discursos moralistas disseminados pelas redes sociais que atingiram, especialmente, a maioria dos fiéis das igrejas neopentecostais que hoje chega a totalizar quase 30% da população. O evidente despreparo do presidente não o impediu de eleger-se. As figuras de Sérgio Moro e do Posto Ipiranga lhe emprestaram credibilidade. Os militares que o apoiaram garantiram uma falsa austeridade no trato com a coisa pública (como se não houvesse corrupção e falcatruas na época da ditadura civil-militar). Bolsonaro não precisou apresentar um projeto para o país, fugiu dos debates, debochou dos opositores, desdenhou do Centrão. Pelo voto os brasileiros feriram a democracia que custou tão caro para ser restaurada.

Hoje o governo encontra-se enfraquecido, atemorizado pela CPI da Covid,  por escândalos de corrupção envolvendo militares de alta patente e seus próprios familiares. E o que ele faz? Entrega aos políticos do centrão, antes rechaçados, a ‘alma’ do governo, remaneja seus principais assessores, cria cargos para alocar amigos fiéis, aparelha todas as instâncias políticas e jurídicas com elementos de sua confiança. E o pior: impõe pautas que são verdadeiras ‘cortinas de fumaça’ para desviar a atenção dos graves problemas enfrentados pelo país.

Infelizmente, a grande mídia e até mesmo parte da imprensa alternativa, cai nessa armadilha. Andam tão preocupados à procura de uma terceira via eleitoral que ‘se esquecem’ das questões cruciais. Discute-se à exaustão a fraude eleitoral que, segundo o governo, seria impedida pelo uso do voto impresso (que agora denominam auditável), apresentam-se provas reveladoras de seu envolvimento com movimentos neonazistas, além de fotos tiradas com a neta de um antigo colaborador do führer. Todos sabem, inclusive ele – que não conseguiu provar que as últimas eleições foram fraudadas – que o voto impresso não passará. Trata-se de pura intimidação e servirá para justificar sua derrota no próximo pleito. Sua simpatia por nazis também não é surpresa, embora a senhora com quem se deixou fotografar não tenha a menor representatividade no cenário internacional, pertencendo a um partido de pouquíssima relevância na Alemanha. Após perder Trump, o ídolo que o inspirou, Bolsonaro ambiciona ocupar um lugar no panteão dos líderes autocratas e para isso se esforça.

O governo e seus asseclas mentem o tempo todo e a imprensa gasta munição comentando as asneiras proferidas em suas lives e entrevistas. Ele pode ser despreparado, tosco, iletrado, mas não é tolo.  Ao invés de perder tempo com pautas que só interessam ao governo para desviar o foco das questões prementes precisamos denunciar as mortes que poderiam ser evitadas, os 15 milhões de desempregados, a corrupção do governo e dos políticos que lhe dão sustentação, o descaso com a saúde, educação e cultura, a ganância pelo poder por parte dos militares. Precisamos recuperar os apoiadores que foram iludidos por falsas promessas. São esses quem decidem a eleição. E eles estão por aí, órfãos, carentes. É preciso (re) conquistá-los.

 

Notas da autora

(1) LEVITSKY, Steven & ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

(2) Dentre essas instituições destaca-se o V-DEM que fornece uma base de dados ampla ao refletir a complexidade do conceito de democracia, que vai além da simples presença de eleições. Com 450 indicadores sobre democracia e sistemas políticos, o V-DEM cobre 202 países. O Índice avalia, com notas de 0 a 1, o quanto um país se aproxima de um regime ditatorial completo (0) ou de uma democracia plena (1). Em 2020, o Brasil registrou pontuação de 0,51, e foi considerado o quarto país que mais se afastou da democracia no ano. Ver a respeito www.politize.com.br/indices-de-democracia

 

Contribuição para o Construir Resistência ->

Resposta de 0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *