Construir Resistência
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Como fazer jornalismo no faroeste caboclo

Perder Dom Phillips, amigo da floresta e dos povos originários, é uma tragédia. Assim como é devastador saber o que se passou com Bruno Pereira, o homem decente perseguido pelo gabinete de Sergio Moro.

É terrível também ouvir as falas cruéis e debochadas do vivendeiro alçado à presidência da República. Em um tosco jogo de palavras, o homem que fez passar a boiada procura criminalizar as vítimas e absolver seus verdugos.

É certo que esse terror não foi inventado pelo miliciano, mas tem sido restaurado e fortalecido por ele e sua legião de botinudos viagreiros, hoje menos interessados na proteção das fronteiras do que em meter o bedelho no processo eleitoral.

Esses rincões sempre compuseram o território do nosso faroeste caboclo, dominados por coronéis latifundiários, contrabandistas, traficantes, pescadores ilegais, madeireiros, garimpeiros e ladrões de crianças.

É o lugar da jagunçada, que assume o papel de polícia particular. Ali, o poder judiciário é exercido informalmente por aqueles mais bem armados.

Não é à toa que vários grupos indígenas preferem o isolamento. Diante das desgraças trazidas pelos piores homens brancos, procuram refúgio nas sombras da hileia.

Gostaria de lembrar um episódio de minha própria história, vivenciado há 32 anos. A ideia é mostrar que a passagem do tempo pouco nos civilizou nas franjas fundas do país.

Fazia um ano e meio que Chico Mendes tinha sido assassinado e a região de Xapuri, no Acre, ainda pegava fogo. Então, decidi passar minhas férias de 1990 justamente ali.

Ao cabo de uma longa conversa com o amigo Dom Moacir Grecchi, bispo de Rio Branco, criei uma estratégia para entrevistar Osmarino Rodrigues, à época apontado como sucessor de Chico.

Passei um dia com os padres amigos de Xapuri e conheci velhos seringueiros que contavam histórias ancestrais da ocupação daquela ponta oeste do Brasil.

No dia seguinte, parti para Brasileia (234 quilômetros da capital) para encontrar Osmarino, também jurado de morte.

Bastou pisar na cidade e desabou uma tempestade amazônica. Depois, amainou, mas resistiu enquanto chuvinha teimosa. Meu casaco meio impermeável logo se encharcou.

Vaguei pela cidade, mas as orientações me faziam andar em círculos. Em dado momento, depois de uma longa caminhada, disparei a pergunta para um transeunte: mas que lugar é aqui?

– Aqui é Cobija, señor, Bolivia!

Voltei pelo mesmo caminho, atravessei a fronteira e encontrei um menino descalço jogando bola na lama. Perguntei por Osmarino e ele me puxou pela mão, sem dizer nada. Depois, correu na frente e foi apontando.

Passei uma barreira natural de árvores baixas e, sobre um capinzal baixo, vi a casa de madeira que abrigaria o líder seringueiro.

Bati na porta, mas não obtive resposta. Tentei de novo e uma frestinha se abriu, mostrando um olho arregalado e uma ponta de barba.

– Quer falar com quem?

– Com o Osmarino… Foi o bispo Moacir que me mandou…

– Ah, mas ele não se encontra…

– E você, amigo, quem é?

– Sou o Paulo…

O sujeito foi abrindo a porta aos poucos e me vasculhando investigativo com o olhar.

– E você quer o que por aqui? É polícia, jornalista, padre? Parece padre, mas pode ser polícia.

– Sou jornalista, mas estou aqui mais para conhecer, pela causa. Eu trabalhava nas obras do Dom Luciano, bispo de São Paulo que é amigo do Dom Moacir, lá de Rio Branco.

Foi quando o semblante de meu interlocutor descansou. Ficamos olhando um para o outro por um tempo, na casinha penumbrenta sem luz elétrica.

Então, magicamente, eu tive minha experiência de Sir Henry Morton Stanley, aquele jornalista galês que, em 1871, na atual Tanzânia, encontrou o então desaparecido missionário anti-escravagista, cientista e explorador David Livingstone.

Na ocasião, Stanley disparou a famosa frase: “Doctor Livingstone, I presume”, dedução que foi premiada com o assentimento do interlocutor.

Fui menos britânico na fala, mas repeti o gesto:

– Osmarino, o novo líder dos seringueiros, não é?

– Ah, como eu sou ruim de disfarce – bufou, antes de rir, enquanto tamborilava a mesa rústica com os dedos ossudos.

Ele se preparava para visitar um promotor público na capital. Não ocupava a sede do sindicato local porque jagunços perambulavam pela cidade desde o dia anterior.

Em todo caso, precisou visitar a casa ampla para pegar os documentos que ali havia esquecido.

Fomos por um caminho acidentado, por trás de taperas, pisando em poças d’água. Quando lá chegamos, um sujeito enorme empurrou minha cabeça para o chão.

– Hoje, aqui, só anda debaixo da linha janela, meu amigo. Por segurança.

Segui Osmarino de quatro, engatinhando aos olhos de uma cabocla que ria muito da situação.

Osmarino seguiria a Xapuri. De lá, até Rio Branco, viajaria no Jipe dos padres. Naquele momento, no entanto, chegou a notícia que você pode conferir na imagem acima (trabalho noticioso que eu ajudaria meu amigo Altino Machado a produzir).

Os bandoleiros haviam promovido um atentado, disparando vários tiros contra o veículo pilotado pelo clérigo Isaías Maria.

O religioso foi parar no fundo de um barranco, a uma distância de 12 metros (quatro andares) da estrada. Milagrosamente, sobreviveu, amparado talvez por alguma força divina.

Segui de ônibus com Osmarino até o ponto em que a rodovia cortava a estradinha para Xapuri. Decidi que mais importante era investigar o atentado e, se possível, ajudar os padres.

Despedimo-nos com um abraço e fui até um bar amplo que, de alguma forma, servia de estação de ônibus. Demoraria a encontrar condução que me levasse à cidade.

Gastei o tempo conversando com o dono do estabelecimento, um galego de olhar desconfiado que procurava me impressionar com piadas sobre gays e mulheres. Não sei fingir direito e economizei os sorrisos.

Ele afundou na construção ampla. Desconfiei e comecei a palmilhar o quintal da casa, metendo-me onde não devia. De repente, por uma janela despencada, entrevi e ouvi o sujeito, que falava pelo rádio.

– É, então, doutor, tem um jornalista aqui, fazendo perguntas… Parece jornalista, mas acho que está com essa turma aí. Bom fazer alguma coisa, sabe como é…

Não vou mentir. Um arrepio me correu o corpo e senti um tranco nos intestinos. Depois, respirei fundo, pensei e botei o pé na estrada, em fuga.

Não tinha percorrido um quilômetro e ouvi o som de um motor. Pulei no mato e, de lá, espiei a passagem de uma caminhonete. Atrás, empinavam-se dois brutamontes armados com carabinas.

Esperei um tantinho e retomei a caminhada. Meia hora depois, tive que conversar diplomaticamente com bois bravos e ruidosos que se interpunham no caminho.

Mais meia hora e meus poderes psicológicos, inventados pelo medo, me safaram de dois cães enormes que latiam soltos diante de um sítio. Eles se aproximaram, me farejaram da cintura aos pés e, depois, resmungando, recuaram para a propriedade. Por um momento, eu havia preferido o encontro com os jagunços.

E, logo depois, fui atendido. Ouvi o ronco de motor, saltei no mato meio ralo, deitei-me, e vi quando os matadores passaram de volta, perscrutando a região.

Segui caminho e me assustei quando anoiteceu. Sem o Sol, a Amazônia se apaga em noites sem Lua. Esgotado, ouvi outro ruído de veículo. Lento e fatigado, não consegui me esconder. Descia longo declive um caminhão, lotado de cabecinhas.

Eram seringueiros, retornando do trabalho. Acenei. O motorista parou, acionou o farol alto, me avaliou e ordenou que me juntasse aos trabalhadores.

– Ô, moço, o senhor parece aqueles monstro de barro, mas é bonitinho, né, Josefa? – disse uma jovem espevitada, com cara de índia, que arrancou risadas do resto da turma.

Deram-me de beber e um pedaço de sanduíche de mortadela (um quarto), que comi sem pensar em cuidados de assepsia. Foram 20 minutos ou mais de conforto sacolejante, no meio de gente simples, trabalhadora e de bom coração.

Naquela noite, dormi imediatamente, conduzido pela exaustão. Sonhei com um Brasil de floresta preservada, protegida por um Chico Mendes de asas alvas, que pairava sobre a mata como um anjo.

Convém sublinhar que a barbárie nas profundezas do Brasil tem relação íntima com a postura do supremo mandatário da Nação. 1990 era a época dos desmandos e delírios de Fernando Collor. Hoje, vivemos sob o desgoverno violento do vivendeiro e de seus lambuzados de Leite Moça, interessados em tirar proveito de transações cruzadas com os exploradores dos recursos naturais amazônicos.

Alguém vai perguntar: mas e o PT? E outro emendará: e o Lula? Obviamente, o Brasil não se tornou um paraíso da vida natural durante o governo do metalúrgico. É um país imenso, em parte impenetrável, com cinco séculos de cultura de exploração, devastação e brutalidade. Além disso, nunca tivemos um Congresso realmente livre dos 300 picaretas, que utilizam o parlamento como balcão de negócios.

Ainda assim, os ecos da civilidade foram, sim, ouvidos durante as gestões petistas. Lula e Dilma não foram capazes de superar muitos dos obstáculos colocados à demarcação das terras indígenas, mas certamente colaboraram para desestimular as ações de madeireiros, pescadores ilegais e garimpeiros. Os trabalhos de monitoramento de reservas, as ações do Ibama e as incursões da Polícia Federal reduziram sensivelmente a delinquência organizada nessas regiões.

Convém lembrar que civilizar Pindorama equivale justamente a rejeitar a ordem dos colonizadores. Civilizar Pindorama depende da restauração do equilíbrio constituído pelas comunidades ancestrais. Depende do que podemos aprender com a ternura e a dignidade dos povos originários. Afinal, contribuir para o avanço do rito civilizatório é o propósito fundamental do jornalismo. Que tenhamos o dom.

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