Por Leonardo Fuhrmann
Um vídeo divulgado pela Rede Globo em 1995 mostrava o bispo Edir Macedo ensinando os pastores da Igreja Universal do Reino de Deus como tirar dinheiro dos fiéis. A cena – que se tornou o estopim de uma guerra entre a emissora líder de mercado e a Record, pertencente a Macedo – veio a público graças a uma reportagem do jornalista Gilberto Nascimento à revista IstoÉ.
Com diversos contatos com líderes religiosos, inclusive dissidentes da Universal, Gilberto se tornou o jornalista que mais acompanha as entranhas da igreja, além de acompanhar com uma visão privilegiada a ascensão dela e de outras neopentecostais na sociedade brasileira, e, consequentemente, na política e nas eleições. E os movimentos de Macedo na política são de dar inveja a qualquer líder do centrão: da demonização do presidente Lula à participação em seus governos, da aliança irrestrita com Jair Bolsonaro até as próximas histórias escritas por Gilberto.
Macedo não dá ponto sem nó, como já diz o ditado popular. E Gilberto, nestes quase 30 anos investiga cada ponto e cada nó, enquanto cobre outra dezena de assuntos. É repórter de temas sociais, direitos humanos e de política também. De lá para cá, passou pelo Diário de S.Paulo, Correio Braziliense, CartaCapital, entre outros. Atuou até mesmo como produtor especial da Rede Record. Atualmente, escreve principalmente para o Intercept Brasil. Neste período lançou também o Reino, pela Companhia das Letras, um livro que narra a ascensão de Macedo desde os primeiros passos.
Assim como faz com Lula e o PT, as estratégias de Macedo em relação a Gilberto mudam conforme o tempo. Dos primeiros processos, em que foi derrotado, a um silêncio total, como se ignorar o repórter fosse uma forma de diminuir a importância de seu trabalho. A estratégia igualmente deu errado. E Gilberto segue aí, não só escrevendo suas reportagens sobre a Universal, como também sendo entrevistado em diversos veículos de imprensa sobre suas investigações a respeito de Macedo.
A reportagem que mostra que a Universal embolsou R$ 33 bilhões em quatro anos e meio só em doações bancárias, publicada em julho de 2022, fez com que a igreja voltasse a usar o Judiciário como forma de constranger o repórter. Em momento nenhum, desde que foi procurada durante a apuração, a Universal contesta a informação em si. Sua origem é explícita: faz parte de um relatório do Laboratório de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro, subordinado ao Centro de Apoio Operacional à Execução da Promotoria paulista. São dados da quebra de sigilo bancário da Universal, em inquérito policial aberto em 2014.
A reportagem tem também um acusador, o empresário Michel Pierre de Souza, que cumpre pena de mais de 70 anos de prisão. Ele é acusado de estelionato, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, crimes contra as relações de consumo e associação criminosa. Souza contou ao repórter que lavava dinheiro para a Universal. Ele foi condenado, a igreja não. E os documentos comprovariam suas denúncias.
A Universal entrou na Justiça com o pedido de abertura de inquérito policial contra Gilberto e o Intercept por “divulgação sem justa causa” e “quebra de sigilo dos documentos revelados”, mesmo sabendo que o processo era público e que o jornalista não é responsável por sigilos processuais.
O ataque da Universal contra Gilberto gerou reações de entidades de defesa do trabalho jornalístico e de direitos humanos. O Instituto Vladimir Herzog considerou a ação “uma inaceitável forma de perseguição e de tentativa de intimidação a um veículo jornalístico que traz informações relevantes, verificadas e de inegável interesse público”.
Para a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), é “ponto indiscutível que jornalistas e veículos de comunicação devem se pautar por documentos verídicos e de interesse público e que não podem ser responsabilizados juridicamente pelas quebras de sigilo que os originaram, conforme entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal (STF). É também uma garantia constitucional o sigilo de fonte. Ou seja, nem o veículo nem o repórter são obrigados a revelar quem forneceu os documentos sigilosos. São duas garantias que devem ser respeitadas para que os brasileiros recebam as informações de interesse público que permeiam grandes reportagens”.
Segundo o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, “trata-se, portanto, de litigância de má fé e lawfare praticados pela IURD contra Gilberto Nascimento, profissional admirável conhecido pela seriedade com que atua e que já recebeu diversos prêmios por seu trabalho”.
Vale lembrar que a igreja tem um histórico controverso de ações judiciais contra jornalistas. A repórter Elvira Lobato, então na Folha de S.Paulo, foi vítima de assédio judicial de integrantes da Universal em 2008. Foram 111 processos abertos por integrantes e fiéis da igreja no Brasil inteiro contra ela.
Método semelhantes foi usado contra o escritor João Paulo Cuenca, alvo desde 2020 de uma ação orquestrada da Universal depois de ter escrito um tweet satírico a respeito da igreja e do clã Bolsonaro. “O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”, debochou. Por conta da publicação, foi alvo de 144 processos, dos quais 126 haviam sido encerrados até março deste ano com vitória do escritor.
São dois casos em que a pena não era uma condenação, mas o sufoco para responder a mais de uma centena de processos em diferentes pontos do País e ter de viajar para cumprir seus prazos.
Leonardo Fuhrmann é repórter investigativo com foco em direitos humanos, política e economia, com 20 anos de experiência em diversas redações