Anatomia de um Golpe de Estado

Por Charles Schaffer Argelazi

No dia 12 de outubro de 1977, Geisel demitiu Sylvio Frota, então ministro do Exército, que pretendia endurecer o regime e impedir a abertura política. Tinha aliados.

Mas Geisel tinha a força e o apoio dos principais comandos militares. Neutralizou Frota e sua tentativa de golpe dentro do golpe. Entretanto, poupados pela anistia, os militares e torturadores encontraram na impunidade uma chama perene para o golpismo; o ideário frotista permaneceria vivo.

Passados quarenta e dois anos, o emblemático ajudante de ordens de Sylvio Frota, agora General Augusto Heleno, assumiu o Gabinete de Segurança Institucional. Com ele, temos o General Eduardo Villas Bôas, o General Hamilton Mourão, o General Braga Netto e o General Luiz Eduardo Ramos.

Todos, adeptos do chamado ideário frotista, colonizaram o governo Bolsonaro.

Antes de assumir o governo, ainda em 2018, o filho do presidente eleito já havia pontuado o que seria o “leitmotiv” de todo o governo Bolsonaro: “Para fechar o STF [Supremo Tribunal Federal] basta um cabo e um soldado.”

O principal alvo de um governo golpista, não nos enganemos, é sempre o poder judiciário.

Este foi o primeiro ato de preparação para o golpe: desacreditar o judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal. Não existe ditadura possível com um judiciário vivo, com uma Suprema Corte independente.

Nasceu o gabinete do ódio, com o domínio das tecnologias nas redes sociais, amparados pelo conselheiro informal da família Bolsonaro, Steve Bannon. Um movimento de mentiras, acusações e detração de reputações começou a circular para desmerecer.

A onda de ataques e de violência institucional foi tão grande que, ainda hoje, muitas mentes e mídias supostamente democráticas, capturadas por este movimento, continuam a tecer ataques à Suprema Corte e à sua própria existência como poder. A ameaça de golpe continua latente.

A reação da Suprema Corte, em 2019, com a abertura do Inquérito das Fake News, nº 4781, pode ser entendida como o primeiro ato de real resistência, e foi fundamental para evitar a concretização de um golpe de Estado.

O primeiro cenário para um golpe seria uma espécie de transição orgânica da democracia para o autoritarismo, sem qualquer embate maior.

Representativo dessa ideologia, o governo começou a queimar livros tal qual Hitler em 1933. As universidades federais e o pensamento crítico deveriam ser destruídos. Foram pinçados atos isolados de algumas dezenas de alunos, de um universo de mais de 1,3 milhão de estudantes, alocados em dezenas de universidades, para apontar uma suposta degradação moral.

O objetivo dessa seleção rigorosa de atos era classificá-los como obscenos, para depois generalizar e desacreditar o ensino universitário.

Assim, com a ideia de que as universidades federais não prestavam, foi mais fácil contingenciar as verbas, tirar o ar do pensamento crítico. Já em 2019, os reitores e suas administrações não tinham mais como remunerar suas equipes, inclusive o pessoal de limpeza e de segurança. O lixo se acumulava, a violência aumentou, e casos de roubo, latrocínios e estupros foram revelados.

Em 2020, tivemos a pandemia, mas os atos golpistas não retrocederam. E o ideário nazista passou a vigorar.

O movimento contra máscaras, álcool em gel, isolamento e vacinas era moldado por um pensamento maior: a tal “imunidade de rebanho”, um projeto de eugenia, onde teríamos um Brasil purificado do peso dos velhos e comórbidos. Os fracos seriam descartados.

Seríamos um país de fortes, e, mortos os indesejados, sobraria um país de “atletas”, para os quais a Covid não passaria de uma gripezinha.

Esse projeto de governo, da “imunidade de rebanho”, levou a 700 mil mortes, pela Covid, 10% de todas as mortes por Covid ocorridas no mundo (cerca de 7 milhões).

Quatro vezes mais mortes do que caberia ao Brasil pela proporção da sua população frente à população mundial (2,53%). Somos 203 milhões de brasileiros, e o mundo tem 8 bilhões de habitantes.

A imposição do movimento pela “imunidade de rebanho”, com a negativa do isolamento, do uso de máscaras e das vacinas custou a vida de cerca de 500 mil brasileiros. Pelo tamanho da nossa população a tragédia não poderia ter ultrapassado a marca dos 200 mil mortos.

Ao mesmo tempo, a “boiada” deveria passar. E não apenas a da destruição ambiental — não nos enganemos — mas também a “boiada” da destruição das instituições.

Passado o período mais grave da Covid, a agenda do golpe se reestruturou. Era a antevéspera das novas eleições presidenciais. Ataques às urnas eletrônicas, que seriam fraudadas, se apresentaram, e a renovação de ataques ao STF e, agora, ao Tribunal Superior Eleitoral recrudesceram.

Em 5 de julho de 2022, Augusto Heleno diria em reunião: “Se tiver que virar a mesa é antes das eleições.”

Em 18 de julho, tivemos a reunião de Bolsonaro com embaixadores e autoridades estrangeiras para desacreditar as urnas eletrônicas e angariar aliados no mundo para um golpe de Estado — uma tentativa frustrada pela negativa das comitivas estrangeiras, que, mais recentemente, lhe custou a inelegibilidade. Inclusive os EUA, na ocasião, pelo seu representante militar, alertaram o Brasil de que não adeririam a nenhuma ruptura institucional.

Então veio o cenário eleitoral mais próximo. Sempre os governos de ocasião, incumbentes, se organizam em torno da máquina estatal para impulsionarem seus candidatos — aqui, nos EUA e no mundo. Obras inauguradas antecipadamente, viagens pagas pelo erário público disfarçadas de agenda presidencial em campanha eleitoral.

Entretanto, no ano eleitoral de 2022, tudo foi mais longe. Nenhum freio, e as ilegalidades se multiplicaram. Criou-se uma dívida monumental, gastos sem limites, tudo para reeleger Bolsonaro. Auxílio Brasil engordado em 50%, criação de um auxílio caminhoneiro e taxista, redução artificial do preço dos combustíveis, pacotes de benefícios fiscais, liberações de 16,5 bilhões apenas em emendas do relator, em orçamento secreto, créditos adicionais e fiscalização menos rigorosa para empresas e microempresas.

Um impacto de R$ 254,9 bilhões — duzentos e cinquenta e quatro bilhões e novecentos milhões de reais — para financiar a reeleição e o Golpe de Estado.

Mas não foram somente recursos retirados à força do Tesouro. Atos de aparelhamento do Exército e da Polícia Federal começavam a se formatar.

A distribuição de notícias falsas, um crime eleitoral, para convencer o eleitor, foi regada com recursos infinitos.

O ato mais descarado foi o movimento da Polícia Rodoviária Federal para impedir que os eleitores do concorrente pudessem chegar às urnas e votar no segundo turno.

Isto ensejou mais uma vez o protagonismo do Judiciário para proteger a democracia, e o Tribunal Superior Eleitoral, com dezenas de apreciações e decisões a respeito da política de desinformação eleitoral, tipificada como crime pelo Código Eleitoral.

E, não menos, no dia da eleição, o TSE teve que intervir na PRF, ameaçando de prisão o comandante que tinha ordenado bloqueios em rodovias federais para impedir que os eleitores do rival político chegassem às urnas.

Derrotado nas urnas, o governo Bolsonaro, capitaneado pelos generais Augusto Heleno e Braga Neto, se envolveu em uma nova fase para o Golpe de Estado. Ainda haveria dois meses e meio até a posse do novo presidente, e algo deveria ser feito neste período.

Logo, os chamados “patriotas” começaram a se concentrar e acampar frente aos quartéis do Exército, pedindo “Intervenção Militar”. Bloquearam rodovias estaduais e federais, além de perpetrarem atos como incêndios e ataques a bens públicos. Confrontos com forças de segurança foram registrados.

Os bloqueios causaram diversos prejuízos. Entre eles, uma mulher foi impedida de se despedir da sua mãe: “Minha mãe está morta e não deixam passar.” Um garoto de nove anos de idade, viajando com seu pai, foi chamado de emergência a um hospital para ser operado de uma perfuração no globo ocular. “Vai a pé,” disseram os manifestantes, “De carro não passa.”

Os pedidos de “intervenção militar” ao longo destes bloqueios e nos acampamentos passaram a ser defendidos pelos golpistas, inclusive agentes políticos e parte da mídia, qualificados como manifestações “pacíficas”, como “liberdade de expressão”.

Em 7 de dezembro de 2022, Bolsonaro chamou os três comandantes das Forças Armadas para avaliar a possibilidade de um Golpe de Estado.

Nessa ocasião, o General Marco Antônio Freire Gomes, comandante do Exército, juntamente com o comandante da Aeronáutica, Brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, recusaram-se a apoiar qualquer ação golpista, reafirmando o compromisso da instituição com a Constituição e a ordem democrática.

O Comandante da Marinha, Almirante Almir Garnier Santos, que mostrou apoio às intenções golpistas, e o Ministro da Defesa, General Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ficaram isolados.

Era Freire Gomes quem tinha armas e canhões à sua disposição, e sua negativa foi decisiva para frustrar as intenções golpistas de Bolsonaro. Tivesse aderido, outro cenário teria se imposto ao Brasil.

Bolsonaro, Braga Neto, Augusto Heleno e os demais frotistas não desistiram da intentona e continuaram a buscar apoio, agora nas estruturas inferiores da hierarquia militar.

Em 12 de dezembro de 2022, quando da diplomação do novo presidente eleito, ataques diversos ocorreram em Brasília. Aliados do governo anterior tentaram invadir a sede da Polícia Federal, depredaram a 5ª Delegacia de Polícia e incendiaram veículos, carros e ônibus.

Na véspera do Natal de 2022, 24 de dezembro, uma bomba foi colocada embaixo de um caminhão de combustível próximo ao Aeroporto de Brasília. O motorista, desconfiado de um objeto suspeito preso no veículo, alertou as autoridades. Rapidamente vieram os bombeiros e a Polícia Federal, que isolaram a área e desarmaram a bomba, frustrando mais uma tentativa de impulsionar o Golpe de Estado.

O delegado-geral da Polícia Civil do Distrito Federal, Robson Cândido, afirmou que houve um “microdetalhe técnico no detonador” que impediu a explosão.

A ação foi operada pelo bolsonarista George Washington de Oliveira Souza. Eram 63 mil litros de querosene de aviação nas proximidades do Aeroporto Internacional de Brasília. Caso tivesse tido sucesso, as consequências teriam sido catastróficas, suspendendo as operações do aeroporto, com danos sérios à infraestrutura. Estima-se em até 200 mortos e 500 feridos, dada a concentração de pessoas e trabalhadores no entorno do aeroporto.

Seria o suficiente para o governo Bolsonaro invocar uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem), utilizando-se de uma interpretação deturpada do artigo 142 da Constituição Federal, o que poderia desencadear um Golpe de Estado. Mais uma tentativa frustrada.

Este seria o objetivo a partir de então: criar condições para uma GLO, mesmo após a posse do novo governo. Na confiança de que poderia obter o apoio das Forças Armadas, os golpistas frotistas ainda acreditavam em um Golpe de Estado.

Foi assim a operação do dia 8 de janeiro de 2023. Os acampamentos na frente dos quartéis não tinham sido desmantelados, e a pregação pela “intervenção militar” continuava presente.

A GLO tem como base, para sua decretação, a presença de “graves distúrbios da ordem pública” e a incapacidade das forças de segurança estaduais ou distritais de conter esses distúrbios.

Estimulados pelos frotistas e aliados, os bolsonaristas acampados desceram à Praça dos Três Poderes para depredações e violências, para justificar o chamado por uma GLO. Era uma última esperança da intentona golpista.

Chegando lá, esses supostos “patriotas”, na verdade golpistas, não encontraram qualquer resistência das forças de segurança distritais. Pelo contrário, até apoios foram registrados. Anderson Torres, desde a Secretaria de Segurança do Distrito Federal, havia prestado um último aceno de lealdade a Jair Bolsonaro.

Os golpistas entraram no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, depredando tudo o que viam, se filmando. Filmaram até um homem defecando em pleno plenário do STF.

A ideia, novamente, era que se chamasse uma GLO. Todos os requisitos estavam presentes: distúrbios graves em que a polícia distrital não teria conseguido conter.

O novo governo, então, foi cauteloso e fez algo que pode também ter salvado a democracia. Ao invés de convocar uma GLO e dar oportunidade para que as Forças Armadas, empoderadas, virassem os tanques contra o Palácio, foi decretada uma intervenção específica nas forças de segurança distritais.

Ao comando de Flávio Dino, então Ministro da Justiça, foi nomeado Ricardo Capelli como interventor, que executou com eficiência e diligência a missão a ele conferida.

Dois dias depois, em 10 de janeiro de 2023, durante uma operação de busca e apreensão, a Polícia Federal encontrou, na residência de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, uma minuta de decreto que visava instaurar um estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral, prendendo Alexandre de Moraes e outros ministros.

Mal escrito e sem nenhum rigor jurídico, este tal Estado de Defesa nada mais era do que um decreto de Golpe de Estado, que teria sido implantado ainda em 2022.

Muitas mentes e mídias tratam esses golpistas como simples baderneiros, e os generais frotistas Braga Neto, Augusto Heleno e os seus, bem como o ex-presidente Bolsonaro, como um exército de Brancaleone. Não são.

Um equívoco. A banalização do mal, da intentona de um Golpe de Estado, não pode prevalecer. O fato de não terem atingido seus objetivos na destruição da Democracia e do Estado de Direito, em especial pela negativa de Freire Gomes, não minimiza a gravidade do ocorrido.

A tentativa do Golpe de Estado, o ataque ao Estado de Direito, à Democracia, a tentativa de destituir um governo democraticamente eleito pela força merecem punições severas e exemplares.

Esta breve síntese histórica remete a algo que jamais deveremos esquecer, algo que devemos defender e repetir incessantemente: Desta vez não haverá anistia. “Sem Anistia, Sem Anistia, Sem Anistia!!”

Charles Schaffer Argelazi é advogado e Cientista Social

 

 

 

 

Contribuição para o Construir Resistência ->

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *