Por Leonardo Sakamoto – Colunista do UOL
Trump venceu a eleição surfando mais a insatisfação com a alta no custo de vida dos trabalhadores do que o ódio contra um “inimigo externo”, no caso, os imigrantes.
O surto inflacionário causado pela pandemia não existe mais, mas os preços estabilizaram-se em um patamar alto, com destaque para aluguéis e hipotecas. Poucas coisas são tão traumatizantes para uma família quanto um despejo.
Sua campanha foi bastante competente em vender a interpretação falsa de que o país estava à beira do precipício.
Contou com a ajuda de uma quantidade de desinformação difundida nos subterrâneos por atores russos e às claras por Elon Musk – que se tornou, nesse período, a maior fonte de fake news dos EUA.
Kamala Harris não conseguiu transformar indicadores econômicos em percepção de qualidade de vida.
E o governo do qual fazia parte tinha o que mostrar: levou o desemprego a 4,1% em setembro (praticamente pleno emprego), os salários cresceram a 3,9% em um ano, a renda disponível per capita aumenta todos os meses há mais de dois anos, o Produto Interno Bruto cresceu 2,8% no último trimestre, os gastos dos consumidores, que respondem pela maior parte da economia, aumentou 3,7% no último trimestre.
Quem depende de aluguel ou refinanciou a sua casa através de uma hipoteca compromete boa parte da renda com moradia.
Muita gente está tendo que deixar sua casa, indo para mais longe ou em residências menores e até precárias. Isso é a antítese do incensado sonho americano.
Sem contar que os juros demoraram para começar a cair – o que, em um país em que todos compram tudo a prazo, de carro a celular, juros altos são péssimos para o humor coletivo.
Ironicamente, se Trump colocar em prática suas promessas, como barreiras a importações, elas terão consequências inflacionárias, o que vai aumentar ainda mais o custo de vida e reverter a curva de queda dos juros. Mas, daí, Inês é morta e Donald é presidente.
Nesta semana, fiz aqui uma análise apontando que a lição que o governo Lula precisa tirar da tentativa democrata de se manter no poder é baixar os preços.
É a percepção de custo de vida alto, principalmente entre os alimentos, que vem mantendo a popularidade de Lula em baixa. Não são as críticas dele ao governo de Israel ou a tentativa fracassada de mediar o conflito na Venezuela, mas o preço do arroz e do feijão.
Com uma taxa de 6,4%, a atual administração resvala no menor desemprego desde que começou a PNAD Contínua, do IBGE, em 2012, a renda média dos trabalhadores também aumentou no último ano, com a volta do aumento do salário mínimo acima da inflação e o PIB deve crescer mais do que 3%, superando as expectativas.
O ano passado teve inflação menor e dentro do teto da meta (4,62%), mas isso não significa que os preços voltaram a patamares anteriores ao salto inflacionário de 2021 (10,06%) e 2022 (5,79%) sob o governo Jair Bolsonaro.
Sim, tal como nos Estados Unidos, a inflação está relativamente controlada, mas tudo segue caro.
No final do dia, a classe trabalhadora não está muito interessada em quem tentou golpe de Estado em 6 de janeiro de 2021, em Washington DC, ou em 8 de janeiro de 2023, em Brasília.
Também importa pouco para a formação do voto se Trump pagou suborno com dinheiro de campanha para uma atriz pornô com quem teve um caso ou se Bolsonaro surrupiou joias doadas por ditaduras árabes e depois vendeu para ajudar a mantê-lo nos EUA enquanto a tentativa de golpe rolava no Brasil. Tirando os loucos que querem a implantacão do fascismo lá e aqui, o voto da maioria é racional e pragmático.
Acusar um adversário de organizar uma máfia para roubar dinheiro de creches não rende tanto voto quanto mostrar creches que foram erguidas, mesmo roubando dinheiro.
Sim, a lente ideológica tem limites diante do pragmatismo do naco não polarizado da população — se o poder compra dispara, não tem como alguém perder uma eleição.
Lula foi reeleito em 2006 mesmo com o escândalo do mensalão porque a economia crescia e o povo comprava geladeira, frango e dentadura. Com a melhora na qualidade de vida, terminou seu segundo mandato com 87% de aprovação, segundo o Ibope.
Como já disse aqui, 2026 não é 2006 e não será 2022. A diferença entre Lula e Bolsonaro foi de pouco mais de 2 milhões de votos, o país está mais polarizado hoje do que antes e o ruído provocado pela desinformação e o golpismo ainda são ensurdecedores.
Mas uma boa parte dos eleitores não está em guerra contra o petista, ao contrário do que acontece com o naco de extrema direita. Ele espera de Lula que cumpra as promessas de campanha. Com picanha e cerveja, mas principalmente com arroz e feijão.
Não vai ser fácil. Sabe qual é o setor mais dependente de estabilidade climática?
Por exemplo, os eventos climáticos extremos, que provocaram tempestades e secas, além de fatores como a alta na demanda externa, jogaram a arroba do boi lá em cima neste final do ano. Isso após mais de um ano e meio de preços em queda que fizeram a alegria de quem fazia churrasco.
Para garantir que ele se reeleja ou aponte um sucessor em 2026, os trabalhadores vão ter que perceber a melhora na qualidade de vida. O que passa pelo crivo implacável no caixa do supermercado.
Não surtiu efeito os alertas para o risco que o, agora, presidente eleito representa baseados no ataque golpista ao Capitólio, no retrocesso no direito ao aborto e na erosão dos direitos civis — como a ameaça de Trump de usar as Forças Armadas contra cidadãos norte-americanos e de deportação em massa.
Kamala Harris não conseguiu mostrar que a vida melhorou sob o governo do qual foi vice. A ver se Lula conseguirá.