Por editora Terra Redonda
“Alô Kehl,
Eu queria ter lido seu livro logo que chegou, e ele inclusive ficava me pedindo para ser lido ali na minha cabeceira, mas tinha que diminuir minha pilha de leituras para poder mergulhar sem estar dividido, e isso só aconteceu neste sábado passado.
Comecei a ler depois do café da manhã, os netos apareceram para passar o final de semana em casa, tentaram me arrastar, mas fui má companhia, seu livro me pegou em cheio. Achei que acabaria no domingo, mas tive que ir para piscina ou fazer almoço para a turma, então acabei na segunda de manhã. O fato é que não conseguia parar de ler e fui muito impactado, como achei que seria.

Primeiro pelo livro em si, o objeto. Belo projeto gráfico, muito bem pensado. As imagens, que são parte da sua vida, completando o texto, a limpeza dos seus desenhos que sempre me impressionaram, os pitacos de alguns personagens e finalmente a qualidade do seu texto. O truque de escrever crônicas ao invés de um textão foi uma escolha perfeita. Cada capítulo é um novo começo e há sempre a surpresa de onde ele nos levará, e em que estilo será contado. Ótimos ganchos para começar cada história, você vai dando os conceitos da vida alternativa sem proselitismo, e de repente uma surpresa quando vem a carta para a sua mãe.
Ah! A carta para a dona Cecília! Aquilo tinha que ser musicado e virar um hino a vida alternativa ou a resiliência. Naquela altura da história, no meio daquela neblina, sem água encanada, sem luz e sem dinheiro, 99% dos leitores já teriam voltado para São Paulo, mas aí vem a mensagem. Você mostra como há algo na vida bem além desses perrengues, e dobra a aposta! Não sou de chorar como você, mas ali os olhos marejaram.
Preciso dizer que me apaixonei pela Alice. Como você encontrou uma mulher que topava encarar uma experiência dessas? Ela sempre parece tão inteira nas fotos, parece alguém que está presente na própria vida, se é que isso faz algum sentido para você. Às vezes eu me sinto como uma espécie de síndico da minha vida, a Alice parece ser a moradora da dela. Imagino e sofri o baque ao ver você perdê-la.

O episódio da construção da casa do Mário parece ser a coroação de toda a trajetória, dali o próximo passo seria você virar um ermitão esquisitão da floresta, ou dar uma guinada, que foi a sua opção. Mas é tocante ver que quanto mais você vai eliminando coisas da sua vida – cama, água encanada, guarda-roupa – menos você dependia delas. Neste ponto eu me perguntava o que teria feito você voltar alguns passos e esperava esta virada, mas jamais imaginaria que pudesse ter sido um boleto de IPTU.
Como te disse no ano passado, você sempre foi uma referência para mim, mesmo não tendo contato por tantos anos, as vezes chegava uma notícia sua e eu pensava nessa outra opção de vida. Naqueles momentos em que eu sentia que meus compromissos pareciam estar me esmagando, e que eu sonhava com algumas horas de ócio, imaginava onde você estaria; numa cachoeira, ou tentando resolver um problema concreto como lidar com lagarta numa horta ou melhorar o fio do serrote. Essa vida me aparecia como uma opção mesmo. Eu não tive o tempo ou a coragem para tentar, mas a sua imagem lá na Chapada que eu fazia era recorrente.
Em 1984 o Nizan pediu para eu fazer um comercial de sapato Samello e me passou um poema que uma americana escreveu para o Borges, mais nada. O texto me pegou na hora, e eu lembrei de você e da chapada. A Samello não tinha dinheiro, mas topei fazer bem barato, montei uma equipe de 3 pessoas com uma câmera 16MM na mão, chamei um elenco para ir para os Lençóis – que era mais fácil e tinha mais estrutura do que a sua Chapada – com a condição deles carregarem equipamentos no passeio que daríamos por dois dias. A propaganda é a versão cosmética da sua experiência, para playboys como eu, mas o princípio da coisa estava lá e era mais ou menos como eu te enxergava, um viajante que viaja leve.
Muito obrigado pelo texto e imagens, foram muito inspiradoras mesmo.
Abraço”
____________
Fernando Meirelles é um renomado cineasta, produtor e roteirista brasileiro, nascido em São Paulo em 9 de novembro de 1955. Ele é amplamente reconhecido por seu trabalho no filme Cidade de Deus (2002), que recebeu aclamação internacional e rendeu a Meirelles uma indicação ao Oscar de Melhor Diretor. Outros trabalhos notáveis incluem O Jardineiro Fiel (2005), que lhe trouxe uma indicação ao Globo de Ouro, e Ensaio Sobre a Cegueira (2008), baseado no romance de José Saramago.
Além de sua carreira no cinema, Meirelles também dirigiu a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Verão de 2016 no Rio de Janeiro, mostrando sua versatilidade artística. Ele é conhecido por abordar temas sociais e políticos em suas obras, muitas vezes explorando questões complexas com profundidade e sensibilidade.
Para adquirir o livro, entre no link abaixo da editora Terra Redonda
https://www.terraredonda.com.br/product-page/nossa-vida-alternativa