Por Sônia Castro Lopes
Que falta a “pimentinha” nos faz…
Se ainda estivesse entre nós, Elis Regina completaria 80 anos, mas há pouco mais de quatro décadas nossa estrela maior partia para brilhar em outros espaços. Elis, Elis Regina, rainha, soberana, musa maior da MPB.
Guardo na memória e no coração o dia 19 de janeiro de 1982. Fui à praia pela manhã encontrar amigos, retornei a casa, tomei banho e fui almoçar na Mesbla. Sim, havia uma Mesbla na Tijuca, ali na Rua Conde de Bonfim, onde hoje funciona um grande supermercado. Lá encontrei minha mãe que me deu a notícia.
Fiquei em choque e comecei a vagar pela loja sem rumo. Em meio às araras de roupas femininas peguei uma peça qualquer e me refugiei num provador para botar pra fora a dor que estava sentindo. Naquele dia acho que não almocei nem jantei, me alimentei de Elis, ouvindo seguidamente “Me deixas louca”, versão de um bolero lindo que ela acabara de gravar em seu último disco.
Passei os dias seguintes acompanhando as notícias. A investigação, as maledicências e louvores que diziam sobre a maior cantora que esse país já conheceu.
Tomei conhecimento de Elis ainda menina, quando passei a imitar a cantora baixinha de voz incrível que rodava os braços como se quisesse levantar vôo. Acompanhava com interesse os festivais da canção e torcia por “Arrastão”, “Cantador” ou qualquer música defendida pela “Pimentinha”. Na verdade torcia por Elis, pela maneira com que ela entoava as canções, se entregava à interpretação, soltava a voz.
Elis me encantava…
Um dia pedi de presente “Elis especial”, um vinil que ouvi sem cansar até estragar a agulha da vitrola do meu avô. Ainda hoje considero um de seus melhores trabalhos. Na capa, uma foto de Elis vestida de preto com aquele sorriso inconfundível. Decorei as letras de todas as músicas – Vou te contar, Wave, Upa neguinho, Bom tempo… Elis misturava sem pudor a musicalidade de Tom, Chico e Edu com a melodia lasciva de Bororó – Alberto de Castro Simões da Silva, carioca de Botafogo que inventou aquele corpo moreno, cheiroso e gostoso da cor do pecado que nunca mais saiu do meu repertório.
Acompanhei também sua vida privada sempre devastada pelas revistas Manchete e O Cruzeiro. O casamento com Ronaldo Bôscoli na capela Mayrink, as margaridas entrelaçadas na trança postiça, tão linda…
Sofri com as traições do marido sedutor por quem se apaixonara e com quem teria seu primeiro filho, João Marcelo. Chorei como ela “atrás da porta” meus amores perdidos, lembrava de “Dois pra lá dois pra cá” cada vez que uma bolha furada pedia um bandaid no calcanhar e passei a misturar wiskhy com guaraná pra ver se dava barato… Vibrei quando Elis desfez o mal entendido com Henfil que a enterrou no Pasquim por julgá-la apoiadora da ditadura (o que, de fato, nunca foi) e tornou-se a intérprete do “Hino da Anistia”, pedindo a volta do irmão do ex-desafeto e de todos os que partiram para fugir dos horrores do regime que se abateu sobre o Brasil.
Torci muito por ela quando recuperou o prazer de viver ao lado de Cesar Mariano que lhe deu seus dois outros filhos – Pedro e Maria Rita. Achei que tinha encontrado a paz na Serra da Cantareira no auge da carreira e da maternidade que ela vivenciou como ninguém… E de repente, a notícia: Elis Regina partiu.
“Agora eu sou uma estrela”, como havia profetizado em um de seus últimos sucessos.
Até hoje leio tudo o que foi publicado sobre Elis – notícias, biografias, homenagens… Faço parte de grupos de fãs nas redes sociais, vi e revi a peça teatral com Leila Garin no papel da estrela e o filme com Andrea Horta, intérprete perfeita da gauchinha nos mínimos detalhes.
Eu, que me considero agnóstica, penso nela todo dia 19 de janeiro e faço uma oração pedindo a Deus que lhe dê a paz que talvez não tenha conseguido alcançar por aqui.
Ontem Elis completou 80 anos. Não consigo imaginá-la uma senhorinha octogenária. Como estaria Elis? Ainda irreverente ou mais comedida? Não saberia responder… mas, certamente, profundamente identificada com pautas progressistas e valores democráticos. E talvez, num show comemorativo, a nossa eterna pimentinha pudesse nos presentear com alguns de seus sucessos inesquecíveis e com tantos outros de autores talentosos que ela, generosamente, lançaria, assim como fez no passado.
Acordei pensando em Elis, ouvindo Elis, vibrando com suas interpretações magistrais. Elis, a Regina, a maior voz do Brasil.
Onde quer que esteja, descanse em paz, minha Rainha.
Sônia Castro Lopes é historiadora e fundadora do site Construir Resistência