Por: Carlos Monteiro
Foram 12 meses, 8.760 horas, 525.600 minutos ou 31.536.000 segundos de isolamento, após a determinação, no Rio de Janeiro, em 17 de março de 2020, da quarentena que deveria perdurar 15 dias – até nisso o Brasil é diferente -, decretada pelo então governador do estado.
Dias tenebrosos, dias de agonia, dias de incertezas. Tempos difíceis, de medo e insegurança. Trezentos e sessenta e cinco, longos e insistentes dias à espera do ‘novo amanhã’, da ‘nova normalidade’; pacientemente o ‘Fumando Espero’ se fez presente em nossas telas individuais, como uma história surreal que, em alguns momentos, tinha nuances perversas de horror. Histórias, muitas vezes, apagadas da memória e da existência.
Muito mudou, nada mudou. Nos primeiros dias, diante do pasmo que se fez presente, uma população assustada com os ares que chegavam da Europa, quedou em casa. Manteve, sobre protestos é claro, certa disciplina. De nada adiantou. Os negacionistas bradaram direito de ir e vir, o capitalismo selvagem mostrou suas poderosas garras. A ‘gripezinha’ avançou, tomou espaço, galgou degraus, alcançou montanhas, fincou clareiras, se alastrou em sua face mais sórdida e, sorrateiramente, começou a solapar o confinamento ceifando vidas.
Vivemos momentos de pura valorização do egoísmo, da ganância, da disputa pelo poder, da mais-valia, da carteirada. Queríamos que fosse, efetivamente, da natureza de ser feliz.
Os aforismos mais protagonizados foram: “farinha pouca, meu pirão primeiro”, “vamos puxar a brasa para a nossa sardinha” e “vamos viver 1000 em um”. A sensação de que tudo ia se ajeitar, que teríamos seres, de fato, mais humanizados, que o egocentrismo, a egolatria e o individualismo dariam lugar ao bem comum, foram pouco a pouco nos deixando ver, no meio de tudo que as máscaras, uma a uma, iam caindo, se espatifando no chão junto com a moral e caráteres. Vimos amoralidade vencendo, a “Lei de Gerson” prevalecendo e bom senso ladeira abaixo.
Presenciamos a insensatez, a divulgação de medidas ineficazes, soluções medicamentosas inócuas e, na maioria das vezes, sem nenhuma prova científica insistentemente. Assistimos o negacionismo ferrenho, a ideologia que mata, a escalada da incongruência e da leviandade.
Tudo mudou? Mudou! O número de ministros da Saúde, foram quatro até agora, média de um a cada três meses. O número de vidas arrebatadas. Chegamos, nos últimos dias, a uma marca macabra: a cada trinta segundos, em média, alguém morre ‘abatido’ pelo vírus. São 282 mil famílias, enlutadas, chorando por seus entes queridos. É como se 459 Arbus A380, o avião em operação com maior capacidade de passageiros do mundo, tivessem despencado do páramo sem nenhum sobrevivente. O somatório de mortes provocadas pela bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, acredita-se, tenha chegado a 220 mil. Temos aqui nossas crianças mudas, telepáticas, atormentadas por um desgoverno cego, inexato. Uma ferida radioativa, estúpida e inválida.
Choramos com tanta gente que partiu. Nosso Aldir, nossa Nicete, nosso Azulay, nosso Izael, nosso Genival, nosso Galvão, nosso Ubirany, nossa Daisy, nosso Ciro, nosso Rodrigo, nossos irmãos brasileiros, nesse rabo de foguete, fazendo chorar em nossa Pátria mãe gentil, tantas Marias, Joanas e Genis da terra Brasílis.
Vimos a mudança de alcaides, que no Rio ainda não mostrou à que veio. Fez muita onda, que virou marola e apagou o fogo de palha, quase, de bate-pronto. Continuamos descritos em Chico: “…Seus filhos/Erravam cegos pelo continente/Levavam pedras feito penitentes/Erguendo estranhas catedrais/E um dia, afinal/Tinham direito a uma alegria fugaz/Uma ofegante epidemia…”.
Assistimos ao encerramento das atividades do Villarino, do Aconchego, da Carandaí, da Syria, do Joia, do Espírito, do Hipódromo, da Timbre, do Sentaí, da Toca, do Trapiche… ficaram em nossas memórias gustativas, visuais e afetivas. A avenida não coloriu, não houve riso nem alegria. O bloco foi da solidão, da tristeza e do pé no chão.
Em momento sublime, assistimos às lives de Caê, Gal e Betânia, como um oásis, uma brisa matinal orvalhada, salpicando de esperança e felicidade nossos corações amargurados e tão angustiados. Vimos amanheceres de encantos sutis, conhecemos os tons de azul saídos da memória, lados de uma mesma janela. Percebemos a chegada da vacina, tímida, ainda muito retraída, mas um alento às esperanças perdidas das belezas deixadas nos cantos da vida.
Nestes dias fotografando as alvoradas, quase solitários – ‘quebrados’ apenas, pela presença de um pássaro mais atrevido ou um mico em busca da banana nossa de cada dia – em que pude ouvir o grito de alerta da natureza clamando uma trégua. A fauna e a flora recrudescer vagarosamente. As matas, sem tanta poluição, aflorarem, reflorirem num verde quase inexistente. Em todos os momentos, éramos eu e a câmera, minha parceira incansável, por meio da qual, através das lentes, cúmplices, às vezes perplexos, registrei momentos inesquecíveis. Éramos eu e o Criador e sua paleta ‘caetaneada’, com cores de todas as nuances, todos os tons, todos os matizes, entretons e ancenúbios. Foram momentos de muita reflexão. De muito olhar para o Planeta Terra.
Em meio a esses dias de pura contemplação matinal, me vieram à lembrança “Cem Anos de Solidão”. Obra-mestra do escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez (1927-2014). Publicada no ano de 1967, conta a história da fictícia cidade de Macondo, fundada pelos Buendía. Recheada de ‘realismos mágicos’ é uma espécie de “Saramandaia” – do dramaturgo Dias Gomes (1922-1999) – Latino-americana, com ares de atualidade tupiniquim. Há de tudo: epidemia de insônia, de esquecimento, ‘pitacos’ de pseudos salvadores da pátria um tanto quanto curandeiros, personagens bizarros e de outros mundos… nada mais surreal, nada mais atual, neste ano pandêmico, soturno e sombrio, quase de trevas, em que vivemos.
Em toda essa temporada, era eu em minha solidão reflexiva.
Em 31.536.000 longuíssimos segundos: nada mudou!
Carlos Monteiro é jornalista e fotógrafo.