Rodrigo Cerqueira do Nascimento Borba [1]
Sonia de Castro Lopes [2]
Introdução
Estudar História é essencialmente deparar-se com o “outro”, com o “diferente”, no tempo e no espaço. Vê-lo, lê-lo, ouvi-lo e narrá-lo para melhor compreendermos quem somos e entendermos nossas próprias culturas. Assim, ao buscar universalidades e particularidades nas realidades, vislumbramos os processos educativos passados, enquanto tentamos obter embasamentos para analisar aquilo que o presente nos coloca como problemas (LOPES E GALVÃO, 2001). É inegável que vivemos tempos de séria instabilidade no campo educacional brasileiro: reformas drásticas realizadas por medidas provisórias, alterações profundas na legislação educacional e mudanças até pouco tempo inimagináveis na carreira magisterial abalam as certezas que os profissionais da educação tinham no tocante à presença da democracia na formulação e na gestão de políticas públicas para a Educação Brasileira.
Incertezas e reviravoltas também foram constantes e perpassaram de modo indelével o universo educacional de nosso país ao longo do período em que se sucedeu a ditadura civil-militar (1964 – 1985). Luiz Antonio Cunha (2014a) enfatiza que tais tempos autoritários legaram ao Brasil duas heranças: o estreitamento da simbiose Estado-capital e a incumbência de a educação servir como instrumento de regeneração moral do indivíduo e da sociedade. Não por acaso, assistimos o recrudescimento desses dois legados como algumas das importantes causas do desequilíbrio que paira atualmente sobre o campo educacional.
As políticas ditatoriais para a Educação Brasileira, mesmo sendo muitas vezes contraditórias entre si, apostaram na profissionalização universal e compulsória do ensino de 2° grau. Expressa na Lei n. 5692/1971, denominada então de Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1° e 2° Graus, a fusão dos ramos do 2° ciclo do ensino médio e a obrigatoriedade da formação de técnicos e auxiliares técnicos, com a consequente extinção de cursos exclusivamente propedêuticos, pode ser considerada como o maior fracasso da ditadura na área educacional (CUNHA, 2014b).
Inserido nesse cenário conturbado, nosso objeto de pesquisa é uma escola que se destaca quando miramos a história do ensino técnico, profissional e tecnológico de nosso país. Tal instituição, hoje chamada Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ) ainda é escassamente explorada pelos historiadores da educação brasileira, apesar de Cardoso (2000) afirmar que ela é considerada a primeira escola fundada no Brasil para formar professores dos quadros do ensino técnico e industrial.
É sobre essa instituição ímpar, que comemora seu centenário de fundação em 2017, que nos debruçaremos neste trabalho. Aqui, buscaremos trazer à baila questões que ex-alunos vivenciaram durante o período de maior inflexão da ditadura civil-militar (1968-1974), quando a escola ainda era denominada Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca (ETF-CSF). No entanto, para analisar os comportamentos do corpo estudantil nesse recorte temporal e compreendermos suas percepções sobre a instituição, precisávamos saber quem eram os alunos que atuavam na escola, bem como quais ações e representações ficaram marcadas em suas memórias ou registradas em documentos.
É importante ressaltar que entendemos que a memória é uma construção sobre o passado, atualizada e renovada no tempo presente (NUNES, 2004) e utilizamos a metodologia da história oral como um procedimento qualitativo para nos amparar no reconhecimento de identidades e misturas, sem a utopia ou a soberba de pensarmos estar em busca da verdade absoluta, mas para realizar aberturas necessárias tanto do ponto de vista individual, quanto social (JOUTARD, 2000). Afinal, estivemos vigilantes para que a consciência biográfica e a história do presente, elementos decisivos no processo mnemônico, não permitissem que a interpretação das memórias construísse uma narrativa linear e contínua, como nos advertem Pierre Bourdieu (2003) e Alessandro Portelli (1997). Como principais depoentes para este trabalho, contamos com Carlos Alvarez Maia, aluno do curso técnico em Eletrônica entre 1965 e 1968, e Vera Lucia Soares Correia, aluna do mesmo curso técnico de 1974 a 1976.[3]
Além disso, para realizar um debate e sustentar nosso arcabouço teórico, realizamos uma triangulação de fontes e trouxemos também informações obtidas no Setor de Arquivo do CEFET/RJ ou dados retirados de jornais que tinham grande circulação na época. Com esse cruzamento de fontes, construímos uma narrativa que nos ajuda a refletir sobre as transformações pelas quais essa instituição passou ao responder às disposições políticas do regime de exceção. Aproveitamos também para tecer uma discussão sobre um intenso foco de resistência estudantil, jamais previamente investigado, que se originou na escola nos anos de 1967 e 1968. Assim, ao narrarmos essa história, nos apoiaremos em De Certau (1998), Foucault (2000; 2001) e Dubet (2006) para empreendermos um debate teórico sobre as reações e relações de sujeitos imersos no panorama austero em que nosso objeto se situa.
Portanto, faremos uma breve retrospectiva para situarmos sócio-historicamente a escola focalizada antes de adentrarmos em questões do cotidiano escolar. Em seguida, apresentaremos alguns elementos que compõem o perfil dos estudantes desse espaço educativo no recorte temporal adotado e, por fim, discutiremos mecanismos de controle e resistência estudantil no interior da instituição. Afinal, interessa-nos de modo especial, nesse trabalho, investir nas respostas dadas pelos estudantes diante do cenário político efervescente e de intensa repressão ideológica que se iniciou em 1968, já às vésperas do Ato Institucional Número 5 (AI-5) instaurado pelo General Costa e Silva, e que perdurou até 1974 quando o General Geisel iniciou um tênue processo de “distensão política”.
A Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca: uma breve retrospectiva
Ao longo de um século formando profissionais para trabalhar em diversas áreas técnicas, a escola, objeto de nosso estudo, foi primeiramente batizada com o título de Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Brás pela Prefeitura Municipal do Distrito Federal. Inicialmente projetada como um espaço de formação para mestres, contramestres e professores de trabalhos manuais para escolas primárias (artigo 1º do decreto 1.800 de 11 de agosto de 1917), hoje, a instituição possui cursos que vão desde o Ensino Médio integrado ao Ensino Técnico até a pós-graduação stricto sensu e caminha para se tornar uma Universidade Tecnológica Federal (SILVEIRA, 2009).
Considerada a primeira escola brasileira fundada para formar professores voltados ao ensino profissional (CARDOSO, 2000), em 1919 a mesma foi repassada pela Prefeitura do Distrito Federal ao Governo Federal e integrada à rede de Escolas de Aprendizes Artífices criada em 1909. Mesmo oferecendo ensino profissional gratuito, tal escola distinguia-se dos demais componentes da rede por não dar “preferência aos desfavorecidos da fortuna” ao exigir o curso primário para o ingresso dos alunos e contava com um quadro docente composto por professores que, em sua maioria, possuía nível superior (BRANDÃO, 2009; CARDOSO, 2005).
Durante o Estado Novo varguista, a Escola passou por novas mudanças e, em 1937, foi transformada em um Liceu Industrial. Com o intuito de marcar a nova fase, o Palacete Leopoldina que abrigava a instituição foi demolido para que prédios que remetessem ao padrão fabril fossem construídos. Todavia, antes que o Liceu fosse inaugurado, o decreto-lei 4.217 de 25 de Fevereiro de 1942 transformou-o em Escola Técnica Nacional (ETN) (CARDOSO, 2000). A ETN então ficou responsável por oferecer gratuitamente cursos industriais e de mestria de 1° ciclo (ginásios industriais) e cursos técnicos e pedagógicos de 2° ciclo (BRANDÃO, 2009).
Em 16 de Outubro de 1959, devido ao decreto 47.038, a ETN pôde gozar de maior autonomia e extinguiu paulatinamente os ginásios industriais, dedicando-se prioritariamente à formação de técnicos. Em 1965, a ETN passou a ser designada Escola Técnica Federal da Guanabara e, no ano seguinte, foi inaugurado o primeiro curso superior na instituição, fruto de um convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): o de Engenharia de Operação (BRANDÃO, 2009; SILVEIRA, 2010).
Em 1967, o decreto-lei 181 de 17 de Fevereiro mudou novamente o nome da escola a fim de homenagear in memoriam o professor Celso Suckow da Fonseca, que foi o primeiro diretor eleito daquele estabelecimento e esteve à frente do mesmo por diversas vezes. Nascia então a Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca (ETF-CSF).
Contudo, em cumprimento à Lei 6545/1978, a ETF foi transformada em Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) e elevada ao status de instituição de Ensino Superior, a fim de verticalizar a formação tecnológica e marcar um modelo de formação profissional pautado na expansão dos Cursos Superiores de Tecnologia, que tinham duração reduzida e formavam tecnólogos (BRANDÃO, 2009), aos quais caberia “uma função dissuasória, desafogando a universidade de muitos pretendentes que se contentariam com uma formação profissional curta de nível superior” (BRASIL, 1975).
A ETF-CSF não ficou à margem do intenso movimento estudantil que sacudiu o Rio de Janeiro e foi o celeiro de onde, inclusive, alguns estudantes partiram para a luta armada. Porém, os atores escolares também sofreram com o enrijecimento do programa institucional[4] (DUBET, 2006) após a implementação de medidas para dissipar a mobilização de alunos e professores, como veremos adiante.
Os estudantes da ETF-CSF: entre ações e representações
Origens sociais muito diversas compunham as trajetórias dos integrantes da comunidade estudantil da ETF-CSF (MAIA, 2016; CORREIA, 2016). Apesar da predominância de discentes oriundos de famílias humildes para os padrões da época – moradores de subúrbios, periferias ou até de favelas -, também havia alunos mais abastados – filhos da classe média carioca – que não pretendiam trabalhar como técnicos por longo período de tempo, mas almejavam ingressar rapidamente no mercado de trabalho ou reconheciam a qualidade do ensino ministrado na instituição. Como exemplo emblemático, temos o caso de Regina Célia Cavalcante Vommaro destacado pela imprensa da época: a candidata fez um curso preparatório renomado para ser aprovada no processo seletivo da escola e obteve a primeira colocação no exame de ingresso para o concorrido curso técnico de Eletrônica, mas foi categórica ao dizer que pretendia cursar uma graduação em Psicologia ao concluir seus estudos na ETF-CSF (JORNAL DO BRASIL, 16 de Janeiro de 1970, p. 12).
A diversidade na composição do público escolar foi paulatinamente intensificada por conta de acréscimos no número de vagas para a instituição. Se havia 640 vagas para novos alunos ingressarem em 1968, esse quantitativo saltou para 880 nas turmas de calouros do ano de 1974. A concorrência também era acirrada: no processo seletivo para acesso em 1974, a proporção de candidatos/vaga era maior que 7:1 (JORNAL DO BRASIL, 31 de Janeiro de 1967, p. 7; 18 de Janeiro de 1973, p.16).
Entretanto, tamanha variedade de identidades e trajetórias estudantis era representada por uma única entidade estudantil até 1969[5]: a Agremiação Estudantil Técnico-Industrial (AETI). Buscando ser porta-voz do alunado da ETF-CSF, à AETI, quando do falecimento de Celso Suckow da Fonseca, coube realizar um convite público para o velório e o sepultamento do futuro patrono da escola; e, diante do assassinato de Edson Luis, uma nota de repúdio foi escrita pela mesma e amplamente divulgada (JORNAL DO BRASIL, 29 de Outubro de 1966, p. 16; 30 de Março de 1968, p. 17).
Carlos Alvarez Maia (2016), diretor da AETI na gestão de 1967, enfatizou que a agremiação procurava congregar os estudantes a partir de atividades esportivas, teatrais, musicais e culturais variadas e que mesmo os discentes que não pretendiam se envolver em eventos com conotações político-partidárias se engajavam em algumas equipes. Segundo o entrevistado, cerca de 50 alunos eram lideranças dentro da agremiação durante sua gestão e dinamizavam ações de mobilização e conscientização entre os alunos, trazendo peças como Morte e Vida Severina para serem encenadas e debatidas dentro da escola, exibindo filmes com reflexões críticas sobre o sistema econômico e político brasileiro ou usando o jornal e a rádio comunitária da AETI para difundir informações que não eram acessadas corriqueiramente por meio da mídia oficial devido à censura.
No entanto, Vera Lúcia Soares Correia (2016), partilhou em depoimento que, mesmo após o fim da AETI, o corpo estudantil prosseguiu organizando eventos, feiras e exposições, mas de cunho predominantemente técnico, apesar de algumas atividades culturais e festas também terem sido realizadas com o aval da direção da escola. Segundo a entrevistada, não houve nenhum movimento reivindicatório ou contestatório partindo do coletivo estudantil durante seus anos de passagem pela instituição e discursos políticos não era veiculados dentro do ambiente escolar. Além disso, nenhum jornal ou rádio geridas por discentes existia na escola. Sendo assim, apoiados em Dubet (2006), podemos inferir que, mesmo inserida em uma paisagem de tensões e embates, a instituição tentava apartar seus atores sociais das experiências que os mesmos vivenciavam ou assistiam fora do ambiente escolar, erigindo barreiras entre acontecimentos externos e a realidade dentro da escola.
Essa forte mudança realizada na articulação estudantil nos dá uma pista de que o programa institucional da ETF-CSF permitia que a direção da escola influenciasse ações e representações estudantis, interferindo até em suas construções identitárias ao exaltar de modo constante valores preciosos para o regime civil-militar, inerentes à ideologia desenvolvimentista e ao patriotismo (FÁVERO, 2009). Por isso, vale recordar que as instituições, numa concepção política, são conjuntos de aparatos e procedimentos de negociação orientados para produzir regras e decisões legítimas, capazes de transformar conflitos de interesses em processos de regulação e opções públicas, coletivas (DUBET, 2006).
Para socializar os alunos de modo inclinado a valores e princípios caros à instituição, eles frequentemente participavam de ações que exaltavam a moral e o civismo promovidas em torno de datas simbólicas como a comemoração da Batalha Naval do Riachuelo, o Dia da Bandeira e o Dia da Independência do Brasil (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 03 de Setembro de 1970, p.11; JORNAL DO BRASIL, 07 de Junho de 1972, p.3; 20 de Novembro de 1972, p.3).
O próprio Hino da escola, com letra composta por Lazinha Luiz Carlos e música de Frutuoso Vianna, transmitia valores disciplinadores, conformadores e ufanistas:
- Esta Escola é também nosso lar / onde todos irmãos nos sentimos.
- Com amor e alegria, a cantar, / é aqui que o Brasil construímos.
- Merecida vitória terá /o que estuda confiante no Bem,
- pois o prêmio que a vida nos dá / muitas vezes demora, mas vem!
- Pelo sonho vivemos erguidos / e esse sonho de muito é capaz!
- Esforçados, pacientes e unidos, / somos nós os soldados da paz!
- Para trás nós deixamos o mundo / quando aqui de manhã penetramos.
- Tem a vida um sentido profundo / se por um ideal trabalhamos
- Nesta vida nós todos sabemos / que somente merecem viver
- os que vivem tal como vivemos, /transformando o trabalho em prazer!
- Pelo sonho vivemos erguidos / e esse sonho de muito é capaz!
- Esforçados, pacientes e unidos, / Somos nós os soldados da paz!
A letra indicia que a ETF-CSF tentava incorporar marcos cognitivos e morais à cultura escolar capazes de balizar o pensamento individual, combinando adaptação ao mundo e educação moral para formar cidadãos livres, mas mantenedores da ordem e da justiça. Nesse caso específico, o hino induzia a crença de que os estudantes não poderiam renunciar ao seu trabalho sem que o mesmo se esvaziasse de sentido. A índole mágica do programa institucional fazia com que valores e princípios abstratos e extrassociais se tornassem práticas ritualizadas, conferindo sentidos e transformando natureza em cultura e cultura em natureza (DUBET, 2006).
Ademais, o trabalho de socialização dos atores escolares situava-se acima de valores diversos e tentava lhes incutir doutrinas e princípios que deveriam ser percebidos como homogêneos e coerentes para produzir padronização e unidade. Desde cedo, os estudantes deveriam aprender a se portar e a seguir as determinações da escola:
“No início do ano, a gente recebia um catálogo com todas as regras e todo calouro quando chegava na escola recebia. Inclusive, tinha aulas em que trabalhavam. “Aqui! Olha, não esqueçam que a gente tem os direitos, mas também tem os deveres! Então enquanto alunos vocês precisam disso, de assistir aula…”. Faziam aquela conscientização e aquela apresentação: “As regras da escola são essas, funciona assim, o horário da escola…”. Tinha tudo documentado num livro maravilhoso (CORREIA, 2016, p. 15).
Porém, segundo Dubet (2006), ao mesmo tempo em que o programa institucional produz um indivíduo socializado, ele fabrica um sujeito autônomo. Assim, socialização e subjetivação tornam-se movimentos sincrônicos, o que permite que grupos desejosos de verem suas demandas e desejos contemplados possam gerar conflitos e protestos contra a violência psíquica institucional, que repousa sobre valores contrários à diversidade e à fragmentação do mundo.
De modo complementar, De Certau (1998) indica que maneiras clandestinas de se servir do que é imposto, de acordo com as ocasiões, possibilita inversões de práticas sociais, a metaforização da ordem dominante e vulgarização de imposições. Assim, enquanto o programa institucional realiza um cerco para homogeneizar e universalizar ideias e ideais, os sujeitos conseguem permanecer, teimosamente e incansavelmente, diferentes dentro do sistema que tenta assimilá-los (DE CERTAU, 1998; DUBET, 2006). E foi isso o que aconteceu na ETF-CSF no final de década de 1960, como veremos adiante.
Vigilância, cooptação e coerção: a capilaridade do poder na ETF-CSF
Após a morte de Celso Suckow da Fonseca, a direção geral da ETF-CSF foi assumida por Edmar de Oliveira Gonçalves. Sua gestão como diretor geral pro tempore durou 22 anos (1966 – 1988) e, durante o regime civil-militar, gozou inegavelmente de prestígio conferido por autoridades nacionais[6]. Segundo Dias (1973), docente de história da ETF-CSF, Edmar foi indicado ao cargo por conta de uma recomendação dada pelo próprio Celso Suckow da Fonseca em caso de morte e, antes de assumir o leme da escola, desempenhou a função de Coordenador de Disciplina entre 1964 e 1965, quando a juventude em geral sentia o reflexo do ambiente dominante no País, de inseguridade social, promovida por elementos estrangeiros infiltrados principalmente no meio da mocidade estudantil; o clima de intranquilidade geral. Os discentes, uns pela própria imaturidade e outros por fatores vários, não estavam alheios à propaganda aliciadora, subversiva, de falsos profetas; encontravam-se mesmo no meio dos nossos estudantes tipos ousados tentando promover arruaças no recinto da Escola, choques com os mestres, agressivos mesmo contra qualquer medida regulamentar, reclamando de tudo e por tudo. (DIAS, 1973, p.205)
Nesse posto, Edmar, docente de Desenho do curso técnico noturno de Máquinas e Motores da ETF-CSF, ficou conhecido por “práticas que iniciaram uma nova filosofia no tratamento dos educandos” (DIAS, 1973, p.205): não admitir de modo algum propagandas políticas, coibir queixas tidas como injustas, registrar quaisquer ocorrências ou penalidades disciplinares em um cadastro geral de alunos e aplicar rigorosamente o Código de Disciplina da Escola em caso de atos ou palavras contrárias a inspetores ou professores. Nesse momento, é interessante lembrar que a disciplina outrora exigida na ETF-CSF pode ser vista como uma pressão do programa institucional para separar os indivíduos da sociedade, estabelecendo um controle social (DUBET, 2006).
Ainda segundo Dias (1973), o professor Edmar era amigo do corpo discente e dava diversas provas de sua compreensão em relação aos anseios da juventude brasileira. Durante sua gestão como Coordenador de Disciplina, a escola teria passado por um período de bonança, apesar das agitações políticas que sacudiam a sociedade, inclusive porque ele esclarecia com solicitude quaisquer tipos de dúvidas das autoridades do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Tal desejo de cooperar com as autoridades policiais foi mantido quando o mesmo passou ao cargo de diretor geral da ETF-CSF. Vimos, por exemplo, que em 1971 a direção da escola estava entre as que mais realizavam denúncias de alunos usuários de maconha em todo o Rio de Janeiro (JORNAL DO BRASIL, 29 de Junho de 1971, p. 18).
Contudo, os problemas com discentes usuários de entorpecentes no início da década de 1970 provavelmente não o preocupavam tanto quanto as questões políticas que permearam a pauta dos debates estudantis até 1968. Afinal, o grupo [político] mais atuante [na ETF-CSF] era o do Partidão. O Partidão era quem dominava a cena. Eram todos muito simpáticos, todos contaminados entre si, contagiados… Durante 1967 teve uma mudança: começou dentro do Partidão, nesse grupo mais radical, uma reação muito forte esquerdizante. E aí a Escola Técnica assumiu uma posição de alguma vanguarda nisso. Ali no grupo da Escola Técnica, apesar de serem poucas pessoas, a chamada base do Partidão não chegava a 10 pessoas, esse grupo se engajou com o Marighella. Tinha uma rede da esquerda muito grande, que estava dentro dos jornais, e a gente estava integrado a isso porque era do Partidão. A gente não tinha problema com a direção não. A gente fazia comício lá dentro da escola. Não tinham essas normas disciplinares não. A gente fumava, namorava em público. Não tinha autocensura. A gente sabia o risco que estava correndo, mas, pô, essa turma foi pra ALN [Ação Libertadora Nacional]. Rebeldia na escola é pinto pra quem tá… Isso não intimidava, a rebeldia ali era muito grande. Desse grupo, eu fui o único que não foi pra luta armada (MAIA, 2016, p. 1, 10 e 16).
A natureza dúbia das ações do diretor, que proferia discursos sobre a ordem e a disciplina, mas aparentemente agia legitimando a permissividade e adotando uma postura benevolente, pode ser amparada em Foucault (2001): essa aparente omissão da direção da escola em coibir atos subversivos estaria ligada a uma performance mais discreta da mecânica punitiva para que uma economia de suspensão de direitos pudesse ser aos poucos instaurada sobre aqueles que não tivessem suas ortopedias morais ilibadas ou corrigidas.
Maia (2016), que respondeu a um inquérito policial enquanto aluno, em 1967, por sua desenvoltura na presidência da AETI e foi preso e torturado por militares em 1972 devido a sua militância na época de ETF-CSF, nos contou que o Professor Edmar era um cara progressista. Fui bem perto do Edmar. O Edmar era um menino que cresceu ali dentro da escola. Muito conhecido lá, ele foi crescendo. Ele era muito habilidoso, muito inteligente, e se transformou em coordenador. O coordenador era o faz tudo. Quando o Celso morreu, o Edmar tinha uma certa ascendência de conhecimento, de perfil, do que era escola, como funcionava… Aí o Edmar subiu, aí evidente que compromete, porque ele mudou de função, né? Eu conheci o Edmar como coordenador, ele era uma pessoa e depois foi outra. Ele ganhou um status monumental, né? Provavelmente, o trabalho dele sempre foi ali [na ETF-CSF]. Ele ganhou uma casa pra morar ali (2016, p. 8).
Já Correia (2016, p. 4) possuía outra impressão, menos contraditória sobre o diretor da escola, mais próxima da narrada por Dias (1973) como a de alguém pacífico e generoso:
Olha, enquanto aluna você não tem acesso à direção. [Mas] quando eu precisei do diretor pessoa, que foi pra mudança do meu curso, ele me recebeu. Pedi pra secretária, mas “o que você quer conversar?”, “Ah, eu quero conversar com ele.” Aí conversei, contei minha história, que eu gostaria muito [de ser transferida de curso], que já foi uma vitória pra mim ter conseguido entrar e que eu queria mudar de curso, se ele achava que podia pelos pontos que eu fiz e tal. E ele falou: “Eu vou mudar você de curso. Tem vaga e você já é da escola, é mais fácil, você já tá aqui e sempre tem um jeitinho, né? Alguns são classificados e não ficam. Então você vai mudar pra Eletrônica.” Nossa Senhora! Nem acreditava, né? O diretor me recebeu, uma reles aluna que acabou de entrar, e me recebeu muito bem. Me ouviu, me atendeu e se disponibilizou pra qualquer coisa, “a direção tá aqui!” Então, assim, uma pessoa muito humana. E capaz, muito capaz, porque eu não tenho o que dizer da época que eu passei ali, dos três anos, dessa parte estrutural da escola. Então eu só tenho a elogiar ele como diretor.
Contudo, apesar da direção da ETF-CSF se esforçar para construir uma imagem parceira junto aos estudantes e do robusto programa institucional da escola transmitir valores disciplinadores e formatadores, em 1968, formaram-se dentro da ETF-CSF quadros para a luta armada contra o regime autoritário que comandava o país. Destarte, De Certau (1998) esclarece que dentro de um sistema normatizador, a pluralidade e criatividade dos indivíduos permitem que diferentes intermediações e apropriações das regras que o regem sejam feitas, resultando em ações imprevisíveis, em ressignificações do que é imposto e em apropriações inventivas das regras. Assim, destacaram-se Iuri Xavier Pereira e Domingos Fernandes pela notoriedade assumida quando entraram na clandestinidade, mas já na ETF-CSF ambos realizavam uma forte militância política.
De acordo com Maia (2016), Iuri foi secretário da AETI em 1967 e um dos diretores do periódico da agremiação que se tornou famoso no meio subversivo por veicular reportagens censuradas na grande mídia que chegavam a eles por intermédio de membros do Partido Comunista. Além disso, de acordo com dossiê apresentado em 1996 à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e disponibilizado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, o estudante foi vice-presidente da União dos Estudantes Técnicos Industriais (UNETI) em 1966 e mobilizava alunos de cursos técnicos para manifestações estudantis. Após sair da ETF-CSF, Iuri ingressou na ALN e em pouco tempo se tornou membro do comando nacional do grupo armado, onde permaneceu até ser preso, torturado e assassinado sob o comando do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra no Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército de São Paulo em Junho de 1972.
Já Domingos Fernandes destacou-se por ser a liderança da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) na ETF-CSF nos anos de 1967 e 1968. Segundo registros de seu prontuário no Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS), Domingos, junto com a AETI, organizou uma ação tipificada como “marginal” dentro da escola. Diante da negação de permissão para que Carlos Heitor Cony e Ferreira Gullar fossem à escola participar de um debate sobre filmes tidos como subversivos, Domingos e seus companheiros fecharam a escola e exibiram o filme “A hora e a vez de Augusto Matraga” no dia 18 de Outubro de 1967. De acordo com o mesmo documento, no dia 07 de Maio de 1968, houve um comício da UBES dentro da ETF-CSF, onde foram vendidas cópias da “Carta Política do Congresso Nacional Secundarista” e, em 16 de Agosto do mesmo ano, o aluno ajudou na distribuição de uma circular contendo críticas às autoridades do governo, mirando de modo especial a Polícia Militar. Deixando a escola em 1968, passou a assaltar bancos e a empreender ações pela ALN. Foi preso em 01 de Abril de 1970 e, ao ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional, segundo documento do Ministério da Aeronáutica de 29 de Junho de 1970, partiu para o exílio na Argélia após ser um dos 40 presos políticos trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig von Holleben, sequestrado em 11 de Junho de 1970.
Diante dessa retrospectiva, é essencial indagar como os órgãos de repressão possuíam tantas informações sobre ações e atitudes do cotidiano escolar dos alunos envolvidos com a “subversão”. Como tantos dados chegavam às mãos dos oficiais? Será que professores ou inspetores desempenhavam papeis de vigilância? Maia (2016) esclarece que os inspetores não tinham muita ação coercitiva direta, mas a gente percebia que eles estavam olhando, escutando. Descobrimos por exemplo que um aluno qualquer era chamado pra um inquérito qualquer dentro da direção. Como é que o cara lá sabia disso? Aí percebemos que os inspetores estavam lá e falavam. Mas eles eram observadores, não interferiam. Era uma função meio policial. Não nos preocupávamos não. O inspetor era alguém silencioso que ficava olhando a gente de longe, não sabiam das nossas conversas. E a gente ia pro pátio, ia lá praquele jardim bonito. A gente conversava muito no pátio. Alguns professores se envolviam muito com a conversa no pátio, eles percebiam que nós éramos um grupo bem engajado (MAIA, 2016, p. 9 e 11).
Todavia, a falta de preocupação com os inspetores ou a ingenuidade dos estudantes pode ter custado caro para os envolvidos com a veiculação de ideias comunistas e a mobilização de resistência dentro do espaço escolar. Afinal, de acordo com Foucault (2001), em uma sociedade de vigilância, panóptica, a visibilidade é uma armadilha e qualquer pessoa pode fazer as engrenagens do poder funcionar. O panoptismo, além de intensificar as relações de disciplina e amplificar técnicas de poder político, pode ter feito com que a ETF-CSF tenha se tornado um observatório social para que dispositivos de controle e de fabricação de estudantes dóceis e úteis fossem instaurados.
Não obstante, apuramos em nossa pesquisa no Setor de Arquivo do atual CEFET/RJ que, em 1968, uma comissão sigilosa formada por cinco inspetores investigou “atos subversivos” de dezenas de alunos da escola, tendo contado com depoimentos de 13 inspetores e com a audição de 114 estudantes, entre rebeldes e delatores. Ressaltamos que o material obtido evidenciou que o quinteto de inspetores não julgava sozinho, o que permitiu que um conjunto de pessoas em diferentes instâncias atuasse contribuindo para a despersonificação dos papeis de julgadores e carrascos (FOUCAULT, 2001).
Ao final do inquérito, 97 discentes tiveram seus vínculos com a ETF-CSF condicionados a uma melhora no comportamento, quatro alunos foram suspensos e 12 foram expulsos da escola por terem cometido infrações disciplinares que atentavam contra a paz e a ordem. As punições, postas como um modo de defesa da escola e, consequentemente, da sociedade, foram moderadas de acordo com seus custos políticos e agiram a fim de docilizar o máximo de alunos possíveis, submetendo suas forças (FOUCAULT, 2000).
As 101 punições que não levaram ao banimento dos discentes condenados oportunizaram um enquadramento dos mesmos à maquinaria do poder. Apenas 12 estudantes, após serem comparados, diferenciados, hierarquizados e entendidos como não passíveis de correção, foram eliminados para barrar o prosseguimento de incitações que atentassem contra os valores do programa institucional da ETF-CSF (FOUCAULT, 2001; DUBET, 2006). As trajetórias táticas construídas por esses sujeitos parecem sem sentido e incoerentes no espaço em que se movimentaram, mas são resultado de uma astuta infiltração que viabilizou desejos e interesses (DE CERTAU, 1998). Tais trilhas, aparentemente errantes, erodiram e deslocaram as redes institucionais, tanto é que esses processos ocorreram antes mesmo do decreto-lei 477/1969, que endureceu o combate a estudantes e docentes subversivos, ter entrado em vigor.
Além disso, informações presentes na documentação desse arquivo escolar foram encontradas transcritas ipsis litteris em documentos sigilosos dos órgãos de repressão, o que indica uma circularidade na transmissão e o compartilhamento de informações entre a ETF-CSF e outras instituições do regime autoritário. Aliás, Dubet (20o6) observa que um programa institucional funciona mediante sua importância solene e pública e por seu sigilo, visto que as informações sobre a ação dele sobre os sujeitos circulam em espaços circunscritos e restritos.
Foucault (2001) nos permite perceber que a ação capilar do poder disciplinar que culminou com a punição desses 113 estudantes no início de 1969 foi eficaz e aparentemente impediu o estabelecimento de uma dinastia de infrações disciplinares semelhantes, tendo deixado os estudantes mais obedientes e produtivos: ao longo dos anos seguintes, a fabricação de indivíduos mais dóceis, úteis e apropriáveis se tornou mais eficiente. Além disso, o panoptismo continuou intimamente associado ao poder disciplinar e a imperceptível vigilância prosseguiu sendo uma peça importante nas engrenagens do aparelho de produção dentro da ETF-CSF, pois, segundo Correia, aluna da escola já na década de 1970, a percepção era de que ninguém vigiava ninguém! Não ficavam em cima. Os inspetores eram pessoas muito, muito… assim bem acolhedoras. E aquela coisa sempre de aconselhar. Você tá vendo que um aluno tava tendo alguma atitude errada, né? Então eles ficavam e faziam aquela parte doutrinatória “isso não é postura de aluno”. Então eram pessoas que também ficavam atentas em situações que ocorriam no corredor ou até mesmo no pátio, na hora do recreio ficava aquele volume maior, mas assim aquela coisa de liberdade vigiada. Você estava sendo vigiado, só não essa coisa de alguém te pegar e te levar pra sala de aula. Tinha um que era muito amigo, o pessoal conversava muito com ele. Ele era assim bem amigo, aquele que reunia um monte de aluno em volta, e ficava conversando. (CORREIA, 2016, p. 4, 5 e 15)
Com isso, percebe-se que a vigilância permaneceu sendo a opção diante da punição. Convidados a serem mantenedores do poder, os inspetores prosseguiram como discretos agentes profiláticos contra revoltas em uma mecânica microscópica. O poder exercido nas pequenas coisas e revezado em seu exercício por diferentes pessoas, sem um dono específico, se manifestava em microrrelações de modo praticamente oculto (FOUCAULT, 2000).
Embora os mecanismos coercitivos não fossem apresentados contundentemente pela direção da escola, isso não significava que ela não influenciaria os rumos tomados pela comunidade estudantil, inclusive durante o auge dos movimentos político-ideológicos em 1967. Ao falar sobre a não reeleição da chapa de seu grupo político para mais um mandato à frente da AETI, Maia deixa claro que, para ele, houve interferência estratégica (DE CERTAU, 1998) dos dirigentes da escola no pleito:
A direção da escola razoavelmente patrocinou a nova diretoria. Foi complicado. O grupo de esquerda mais radical já tinha saído do Partidão pra ALN. Tinha o grupo chamado de direita lá brabo. Foi de onde veio a chapa que ganhou a eleição no fim da minha. A direita assumiu. Quem fazia a eleição éramos nós, mas aquilo deu vários tumultos ali. A votação era no ginásio e esse grupo de alunos meio que alinhados com a direção da escola… A direção da escola começou o curso de Engenharia Operacional e o acordo MEC-USAID fornecia bolsas. Então vários alunos do curso técnico ganhavam bolsas pra irem pros EUA. Se preparavam lá por 6 meses mais ou menos, vinham e entravam pra Engenharia Operacional. Foi mais uma das estratégias que eles usaram para cooptar alunos e lideranças locais. Tinham benefícios que eram dados… O Edmar foi muito responsável. Ele fomentou uma balbúrdia ferrada. Deixou um grupo de alunos fazer uma baderna no ginásio com sacos de farinha, água, explodindo aquilo tudo. Eram alunos que a gente conhecia, os chamados “barra pesada”, gente meio vagabunda, tinha um pessoal meio apolítico. Pra tumultuar mesmo. Falei: “cara, não acredito! Só pode ser orquestrado, porque esses caras não têm nenhuma organização” (2016, p. 7, 9 e 18)
Esse registro nos lembra que o poder sobrevive por encantar as pessoas e oferecer algo em troca para que elas se submetam a ele. Desse modo, o poder se concretiza nas relações sociais de modo estratégico e sutil (FOUCAULT, 2000). Inclusive, pondera De Certau (1998), força e sedução são modos de impor práticas e representações, às vezes até permitindo consentimentos por parte dos que sofrem a ação.
Considerações Finais
Nesse trabalho, tivemos como objeto de estudo uma instituição ainda pouco explorada pela História e Historiografia Educacional: a Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca. Ao longo do texto, tentamos instrumentalizar memórias de dois ex-alunos da escola para mostrar de que modo um eficaz programa institucional convidava, de modo bastante furtivo, estudantes para o exercício de valores até então caros ao regime autoritário que dominou o país por duas décadas.
Trouxemos também o interessante movimento de resistência estudantil ocorrido dentro da ETF-CSF entre 1967 e 1968, bem como exploramos sua posterior asfixia viabilizada por dispositivos de poder que, atuando dentro da escola de forma capilarizada e discreta, foram capazes de neutralizar os interesses e a articulação estudantil para questões políticas, deixando os discentes mais preocupados com sua formação para a “ciência da indústria” do que com questões ideológicas.
Porém, Fávero (2009) nos mostra que os movimentos de resistência estudantil ocorridos na América do Sul durante os regimes ditatoriais do século passado buscaram uma intensa renovação acadêmica acompanhada por amplas reformas sociais, políticas e econômicas, sendo, portanto, essencial não superestimar a autonomia e os projetos de transformação dessas mobilizações, mas sendo também fundamental não vê-las como simples massas de manobra a serviço de grupos políticos. Apesar de paradoxal, ao mesmo tempo em que os estudantes se viam como revolucionários, eles mesmos aprendiam sobre os processos de conservação e de mudanças nos meios políticos. Ademais, os mesmos formavam uma categoria social composta por frações de classes sociais, o que conferia um caráter eclético e contraditório a seus esforços. A alternância de orientações ideológicas, posições políticas e compromissos sociais variava de acordo com o embate de forças convergentes e divergentes em jogo diante da heterogeneidade dos integrantes dos movimentos. Essa ponderação talvez nos ajude a compreender porque a forma como os discentes interagiam com os projetos políticos para a ETF-CSF mudou de modo tão drástico e rápido, apesar de suas origens sociais terem se mantido constantes nesse intervalo de tempo que apresentamos.
Não obstante, o ano de 1968 ficou marcado como “o ano que não terminou” (VENTURA, 1988) por conta das portentosas manifestações estudantis que ocorreram no mundo inteiro e que também repercutiram no Brasil. A luta dos estudantes contra o regime autoritário, apoiados pelas elites intelectuais e artísticas do país, levou a sérias crises com as autoridades e a passeatas históricas, como a famosa “passeata dos 100 mil”. O movimento estudantil, já assumindo um contorno mais vultuoso e estruturado, fez com que houvesse um recrudescimento da articulação entre os estudantes, bem como dos choques entre os mesmos e os aparelhos apaziguadores do Estado.
As passeatas e as mobilizações de diferentes setores sociais ao longo de 1968 criaram um clima de esperança e de transformação que fizeram muita gente crer em uma possível abertura democrática do país. Porém, o AI-5 destruiu toda essa pretensão em 13 de dezembro daquele ano. Além disso, o decreto-lei n° 477, de 26 fevereiro de 1969, fez cessar qualquer legalidade das manifestações estudantis e encerrou as possibilidades de diálogo ao levar o AI-5 para dentro de universidade e escolas: todo cidadão que se opusesse ao novo regime seria considerado subversivo. Sendo assim, o movimento estudantil foi empurrado para a ilegalidade e muitos líderes estudantis arregimentados por organizações da luta armada (LIRA, 2010).
Referências
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NOTAS
[1] Licenciado em Ciências Biológicas pela UFRJ. Mestre em educação pela UFRJ e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF.
[2] Doutora em Educação Brasileira. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ.
[3] Ambos autorizaram a divulgação de seus nomes.
[4] De acordo com Dubet (2006), o programa institucional é um tipo particular de socialização, uma forma específica de trabalho sobre os outros, que gera uma interiorização do social e da cultura pelos atores sociais. Portanto, o programa institucional é um processo social que transforma valores e princípios em ações e em subjetividade através de um trabalho profissional específico e organizado. É um tipo de relação social e de trabalho institucional sobre os outros.
[5] Neste ano, a AETI foi fechada em virtude do AI-5 e do decreto-lei n. 477/1969, que definia infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares. De acordo com informações de um depoimento não inserido nesse texto, o fechamento da AETI foi realizado com truculência e de modo repentino por forças policiais e militares, resultando na destruição de todo seu patrimônio.
[6] Em 1972, Edmar de Oliveira Gonçalves recebeu o grau de Cavaleiro da Ordem Nacional do Mérito Educativo, concedido pelo presidente general Emílio Médici e pelo ministro da educação Jarbas Passarinho (DOU, 24/11/1972), passou a diretor geral do Departamento de Ensino Médio do Ministério da Educação (JORNAL DO BRASIL, 08 de Novembro de 1972, p. 15), onde ficou até 1974, conforme indicam os Diários Oficiais da União de 07/08/1973, 19/10/1973 e 28/01/1974. Em 1972 também foi nomeado membro da Comissão Supervisora da Reforma do Ensino de 1° e 2° graus pelo Secretário de Educação e Cultura do Estado da Guanabara (JORNAL DO BRASIL, 25 de Maio de 1972, p.20). Em 1973 foi admitido como sócio efetivo da Associação Brasileira de Educação (CORREIO DA MANHÃ, 02 de Outubro de 1973, p. 10).