Construir Resistência
Foto: Arquivo Pessoal

Codinome Ana

Miriam Waidenfeld Chaves

 

Num domingo, Flávia, ao voltar de sua primeira reunião clandestina, enxergou a cidade  onde morava como se fosse a primeira vez. Desceu do ônibus e olhou para trás, procurando se certificar de que não estava sendo seguida.

Esse comportamento tornou-se corriqueiro em sua vida. E daí em diante, nunca mais desceu de um ônibus como outrora. Seu olhar deslocou-se do sol, do mar e das montanhas para as pessoas que  passou sorrateiramente a observar.

Ana passou a habitar em Flávia.

Sem perceber desenvolveu um faro que lhe preveniu de alguns perigos. Teve aquele nas cercanias da universidade, perto do bar do Nelson, quando de longe avistou dois caras estranhos conversando com um amigo seu. Passou reto e não parou para o cafezinho. Depois soube, perguntavam por ela. Num outro ocorrido, Josias, novo colega de faculdade, várias vezes a abordou dando uma de conquistador. Farejando encrenca, não deu pelota. Soube, mais tarde, que era um policial infiltrado.

No final dos anos 1970, tentou por duas vezes ir ao Encontro Nacional dos Estudantes. Em Minas, correu tanto da polícia que terminou invadindo uma Igreja, onde se refugiou junto com outras 50 pessoas. Lá ficou  aguardando  as negociações entre a polícia e o pároco, e apenas à noite foi liberada. No ano seguinte, em São Paulo, teve menos sorte e,  sitiada no diretório acadêmico, saiu de lá direto para o DOPS, onde foi fichada.

Sei que  viveu outras  histórias rocambolescas nesse período tão sombrio de sua vida. De tão esdrúxulas, guardou só para si. Nunca insisti para contá-las, apesar de minha curiosidade.

Só sei que me fala daqueles tempos com certa nostalgia. Diz-me que, apesar da repressão, acreditava poder mudar o mundo. E nos seus vinte e poucos anos tudo valia a pena!

Ah, os anos 1980! Quanta saudade!

Conta-me que o Palácio Guanabara fora invadido por uma multidão, após a vitória de Leonel Brizola para governador. Os jardins daquela mansão  fantasmagórica naquela noite coalharam-se de bandeiras vermelhas, faixas e jovens alegres se confraternizando, enquanto aguardavam pelo discurso de Briza.

Também me confessou que dois anos depois se encontrava junto com um milhão de pessoas na Candelária. Sentada no asfalto da Presidente Vargas com seus companheiros, olhava embevecida para o palanque, na espera de seus ídolos falarem à nação.

Nesse momento, abre a caixa com seus guardados e me mostra um recorte de jornal, cuja manchete diz Cidade faz por diretas seu maior comício.

De repente, começa a ler em voz alta: Quero falar à nação brasileira, através desta multidão de um milhão de conterrâneos meus. Nós queremos que se restaure no Brasil o preceito do artigo primeiro, parágrafo primeiro da Constituição Federal. Com a voz embargada continua: ‘Todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido’. Esta é a minha mensagem. Este é meu desejo. Este é meu propósito.

Confidencia-me que a multidão naquele momento, ao ouvir a voz frágil de Sobral Pinto, já com  90 anos, foi dormir em festa. Com a certeza de que os novos tempos estavam chegando.

E assim a pele de Ana finalmente esmoreceu-se em Flávia, que aos poucos passou a olhar para as pessoas sem desconfiança e medo. Voltou a contemplar a montanha, o mar e o sol. Inclusive, nem olhava mais para trás quando descia de algum ônibus.

Desde essa época sou testemunha de que Flávia não tem saído das ruas. Foi assim em 1992 e 2016.

E, ao finalizar esta conversa franca encerra me dizendo:

– Estou apenas aguardando a convocação para que a geração de 1968 vá para as ruas em 28 de junho para comemorar os 53 anos da passeata dos 100 mil e poder gritar: FORA GENOCIDA!

 

 

Miriam Chaves é contista e professora da UFRJ.

Compartilhar:

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email

Matérias Relacionadas

Rolar para cima