Violência naturalizada

Por Bruno Freixo

A percepção da violência urbana traduzida em falas nas redes sociais como: “Parabéns aos policiais”, “Por mais operações como essa”, “Tá com pena? Leva pra casa”, “Bandido bom é bandido morto”, “Direitos Humanos para humanos direitos”, “Quer que o policial leve flores pra marginal?”, “A maioria ali é bandido, não tem ninguém inocente”, “Tudo vítima da sociedade”, “Antes a mãe dele chorar que a minha”, “Na hora de assaltar trabalhador eles não têm pena”, “A Globo sempre defendendo bandidos”, entre outros discursos e crenças, nos ajuda a entender o quanto nos enxergamos mais como indivíduos e menos como coletividade.

A segurança pública é aplaudida quando se transforma em grupo privado de extermínio. É nesse raciocínio, por exemplo, que a milícia é protagonizada como um mal necessário e, a classe policial – tão fetichizada entre os mais conservadores -, é heroificada como símbolo de justiçamento, inclusive quando há excessos.

Essa visão alegórica da polícia cria uma imunidade social na classe a ponto de a população normalizar o absurdo.

O caso de Genivaldo Jesus dos Santos – um trabalhador com doença mental que foi interceptado em uma moto por dirigir sem capacete e, por conta disso, lamentavelmente foi assassinado com método de asfixia a gás por policiais federais no porta-malas da viatura -, em que houve um silêncio ensurdecedor da sociedade e do governo federal, é didático para entender como a polícia é simbolizada como um poder imaculado, incorruptível e acima de qualquer suspeita perante uma população bélica e punitivista.

A própria percepção religiosa glamouriza o mundo militar por uma questão hermenêutica associada ao Velho Testamento da Bíblia, em que a figura de Deus carrega o pseudônimo de “Senhor dos Exércitos”, durante as invasões bélicas do povo de Israel na conquista de outros territórios.

Nesse sentido, a lógica militar se aproxima em demasia da lógica religiosa. O militar é tido como um missionário cuja função é “derrotar o inimigo”.

Os quartéis, assim como as igrejas, viram espaços de eliminação das subjetividades à medida em que se protagoniza o culto à obediência, à ordem e à manutenção das hierarquias. É proibido questionar, refletir ou ter dúvidas. As respostas prontas e as certezas são regras nesses espaços.

Não é incomum, por exemplo, encontrar homens com fardas do Exército sendo exaltados entre brados de “Glórias a Deus” e “Aleluias” em cultos de igrejas neopentecostais nas periferias. E, não à toa, as instituições evangélicas são o principal terreno eleitoral do governo militarizado de Jair Bolsonaro, com apoio explícito e incondicional.

Por isso, no imaginário coletivo, o extermínio que houve na Vila Cruzeiro e no Jacarezinho não são percebidos como uma chacina, mas entendidos como uma “missão”, legitimando incursões autoritárias das polícias em favelas e alimentando uma falsa compreensão da realidade, em que o perigo vem das favelas, o perigo está nas favelas, o perigo é a favela, como se a questão do tráfico fosse um problema oriundo dos territórios periféricos.

A favela vira o lugar a ser evitado, justamente por ser entendida como uma localidade monolítica, em que todos ou são bandidos ou parentes de bandidos. Quando um morador que nada tem a ver com o tráfico é atingido por uma bala perdida, a justificativa é: “Paciência! Na guerra, alguns têm que morrer”.

Essa percepção é potencializada em programas policialescos e em grupos políticos ultraconservadores que fazem da “guerra às drogas” um valioso ativo de campanha, enaltecendo ainda mais a figura do policial justiceiro.

O cidadão médio – acostumado a marchar e a obedecer – sequer compreende o que é uma República, o que significa separação de poderes e o que é um Estado Democrático de Direito, justamente porque não se vê como coletividade, mas apenas como indivíduo e, por isso, entende que, diante da violência que o assola, precisa ter uma arma na cintura. O sentido de segurança pública é invertido em defesa privada. E, assim, voltamos ao Estado Leviatã de Thomas Hobbes…

A política de extermínio vira uma propaganda eleitoral perfeita de quem está atrás nas pesquisas e precisa distrair uma população alienada com algo chocante para tirar o holofote do que realmente alimenta o tráfico e a violência urbana.

A segurança pública entendida como crença é um grande aliado na perpetuação da violência, um trunfo econômico nos grupos da sociedade civil que se alimentam da política de criminalização das drogas e da fetichização militar, e garantia de reeleição de grupos políticos que inflamam a classe média contra as periferias.

 

Bruno Freixo é  é historiador e pesquisador nas áreas de Sociologia das Religiões (Unirio) e Ciência e Tecnologia no Brasil Oitocentista (MAST)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *