Por Léo Bueno
Na manhã de ontem, durante a Olimpíada, a boxeadora italiana Angelina Carini desistiu de sua luta aos 46 segundos.
Logo no começo do embate, ela levara um soco no nariz que lhe abriu a sangria. O segundo soco, segundo a própria, foi demais. “Eu nunca havia tomado um murro tão forte. Doeu demais, então eu falei chega”, disse.
A dona do tal soco é a argelina Imane Khelif, que sem querer disparou uma discussão no mundo todo. Em dois testes sequenciais, o último no ano passado, Khelif demonstrara níveis de testosterona – o chamado hormônio masculino, que todo mundo tem, mas os homens em maior quantidade – muito acima dos de mulheres comuns.
Esse tipo de teste não é novo. Muita gente já se esqueceu da judoca brasileira Edinanci Silva, duas vezes bronze em campeonatos mundiais, que vivia tendo de ‘provar que era mulher’ para os comitês esportivos.
VALIDADE – Existe uma discussão séria – e serial – no esporte sobre a validade de mulheres trans competirem em jogos femininos, principalmente aqueles que dependem da força. No Brasil, há o caso da jogadora Tiffany, que atua na equipe de vôlei do Osasco. Ela chegou a jogar na Itália, inclusive.
Tiffany nasceu Rodrigo. Joga profissionalmente há algum tempo com permissão da CBV. O COI, até 2016, exigia período mínimo de dois anos de tratamento hormonal e cirurgia de redesignação sexual. Hoje só exige um ano do tratamento. A jogadora, porém, passou pela cirurgia há mais de uma década. Seu caso vive cercado de polêmica – o antes da Tiffany, Rodrigo, já jogara em ligas masculinas.
Ocorre que o caso de Khelif é diferente. Se o gênero de uma pessoa for determinado biologicamente, Khelif é mesmo uma mulher – como Edinanci e diferentemente de Tiffany. Khelif nasceu com uma ppk, com útero e ovário.
Ela é portadora de uma condição chamada Desordem de Desenvolvimento de Sexo (DSD), o que faz com que seu corpo produza mais testosterona do que o habitual. Em consequência, desenvolve a musculatura mais do que as mulheres comuns.
OPINIÕES – Neste ponto, a pergunta devia ser: é justo uma mulher com DSD disputar competições femininas como se estivesse em pé de igualdade? Como devia acontecer em todos os debates, qualquer pessoa poderia ter direito à sua opinião, opiniões fundadas deveriam prevalecer e os especialistas deveriam preponderar.
Só que a discussão que dominou o noticiário e as redes é outra. Em muitos lugares, Khelif está sendo chamada de mulher transexual, coisa que ela não é.
(Imagine você, aliás, se a Argélia, um país muçulmano, iria aceitar ser representado por uma trans. Não aceitou este ano, como não aceitara em 2021, quando ela já lutou em Tóquio, caindo nas quartas-de-final para a irlandesa Kellie Harrington, que ganharia a medalha de ouro.)
Quando a discussão cega repleta de insultos dominou a rede, lembrei das incontáveis vezes que fui chamado de transfóbico por motivos sempre similares uns aos outros.
Em alguns debates que tangem ao gênero, como no caso do banheiro compartilhado, sempre defendi que as mulheres deveriam ser as primeiras a serem ouvidas. Pode parecer óbvio que uma trans não esteja entrando no banheiro para agredir ou assediar ninguém. Mas é apenas justo entender que muitas mulheres, que por tantos séculos vêm sendo agredidas e humilhadas, tenham medo.
Esse medo é compreensível e assim deve ser entendido. É natural, uma questão de tolerância histórica, que elas sejam as primeiras a serem consultadas quanto a quem poderá ou não frequentar os seus banheiros.
Repito (não devia precisar repetir, mas preciso): não sou contra os banheiros compartilhados. Apenas defendo que as mulheres precisam ser ouvidas sobre o assunto. Só isso.
Essa posição, no entanto, não me livra de ser chamado de ‘transfóbico’ amiúde.
No caso de Khelif, parece ter acontecido movimento na mão inversa: muita gente está chamando a atleta de ‘homem’ e acusando o COI de colocar um homem para bater em mulheres. Aí, quando lembrei que ela nasceu mulher – um fato, não uma opinião -, acusaram-me de ser um homem defendendo outro homem na sociedade patriarcal.
SEMENTE – E talvez esse radicalismo de parte a parte seja a semente do impasse. O problema não é quem está certo – esse DEVERIA ser o problema, mas só se pode constatar algo assim quando há um debate efetivo de todos os lados. Seria preciso, ao menos, haver diálogo.
A discussão está dominada por pessoas imunes não à opinião contrária, o que não seria pecado, mas à própria possibilidade de ao outro lado ser facultado emitir uma opinião.
É um confronto de intolerâncias. Que acontece justamente na fase que precede as decisões, a fase do diálogo. Se ela não for concluída, as decisões nunca serão tomadas.
O ‘diálogo’ parou nesse ponto: se você acha que a Tiffany não devia jogar numa liga profissional feminina ou que mulheres têm direito de serem ouvidas quanto ao banheiro compartilhado, você é transfóbico. Se você lembra que a Khelif é sim uma mulher de nascimento, está defendendo o patriarcado.
Essa é a maneira com que dois grupos historicamente oprimidos conseguem calar aqueles que defendem o diálogo. Não é preciso ser gênio para saber que quem sai ganhando são as pessoas que de fato odeiam as lutas feministas ou trans.
Nem para reconhecer o final desse impasse – ou seja, ele não vai ter final nenhum, pelo menos na luta dos dois grupos. A fórmula mais certa para uma reivindicação não dar certo é sempre a recusa ao diálogo.
Léo Bueno é jornalista