Profissão docente: entre o sacerdócio e a profissionalização

Sonia Castro Lopes

Por Sonia Castro Lopes

 

Puro nos costumes, no dever exato

Modesto, polido, cheio de bondade,

Paciente, pio, firme no caráter,

Zeloso, ativo e tão prudente

Em punir como em louvar;

Agente sem ambições, apóstolos

Em quem a infância se modela,

Espelho em que os mundos se refletem,

Mito e sacerdote, juiz e pai,

Eis o mestre, eis o professor. (1)

 

O magistério como sacerdócio traduz a representação do professor construída ao longo de séculos e que até hoje, de certa forma, ainda nos define. Na verdade, o ensino foi durante muito tempo apresentado como uma vocação, um apostolado, um sacerdócio leigo; seu exercício se baseava, antes de tudo, nas qualidades morais que o mestre tinha que possuir em seu trabalho com crianças e jovens.

Se na Idade Média a educação se fazia em um círculo comunitário mais amplo onde as crianças realizavam sua aprendizagem cotidiana no mundo dos adultos, as profundas transformações que marcaram a Idade Moderna (sec. XV-XVIII) introduziram a humanidade em uma nova fase caracterizada pelo estabelecimento de instituições que se dedicaram ao ensino da infância e juventude. A escola moderna surgiu com o objetivo de tomar a cargo a educação das crianças no sentido que a entendemos hoje. Assim, os três séculos da época moderna serão marcados no ocidente pelo desenvolvimento da educação escolarizada em detrimento dos modos antigos de aprendizagem. (2)

Sob influência da Igreja (Reforma/Contra-Reforma), do desenvolvimento das relações capitalistas de produção e do renascimento cultural, concebe-se um “novo” homem, agora transformável sob o poder da educação. Surgem várias instituições educacionais e, nos países católicos, predomina o ensino dos jesuítas que, convertidos em autoridades morais, ansiavam por formar “bons cristãos” que deveriam ser educados em espaços fechados – os colégios-, onde os professores controlavam e censuravam os saberes que iriam transmitir. Dessa forma, os mestres passaram a ser os detentores do saber, das “verdades”, restando  aos estudantes a situação de subordinação. Esse processo de “pedagogização dos saberes” implicou a adoção de aparatos de disciplina e moralização dos alunos; por isso a disciplina e a manutenção da ordem passaram a ocupar um papel central nos sistemas de ensino. (3)

Se a Igreja dominou o cenário educacional até o século XVIII, a partir de então o debate se beneficia dos princípios iluministas quando o pensamento pedagógico está impregnado da ideia de Estado. A “era das revoluções” (4) provoca a emergência do Estado-Nação e a arrancada da revolução industrial, momento em que se assiste a um processo de institucionalização e estatização dos sistemas escolares.  Embora se mantenha a imagem da infância e os projetos pedagógicos, mudam os currículos e programas, assim como o recrutamento do corpo docente. Os professores a partir de então são funcionários do Estado, recrutados e vigiados pelo poder estatal, apesar de o modelo docente permanecer próximo ao do sacerdote. A secularização do ensino sob a responsabilidade do Estado vai exigir dos docentes o domínio de um corpo de saberes e de um saber-fazer específico. O ensino torna-se assunto de “especialistas” e passa-se a exigir também do professorado um conjunto de normas e valores que irão compor a identidade desses trabalhadores, ainda que tais condutas sejam fortemente influenciadas por crenças e atitudes morais e religiosas.

Datam do final do século XIX e primeiras décadas do século XX a emergência das escolas normais como espaços especializados de formação docente. Surgem também as primeiras associações de professores que aparecem simultaneamente ao advento da escola de massas. Até meados do século passado valorizava-se a profissão em razão da cientifização dos saberes docentes, melhores condições de acesso à carreira e políticas públicas de um Estado que procurava investir no setor social. No Brasil assiste-se a uma demanda por educação pública de qualidade que, se ainda não contemplava todos, ao menos atendia uma parcela da população urbana. É dessa época a “boa escola” de que se recordam, saudosos, nossos pais e avós…

A partir do final dos anos de 1960, a profissão começa a dar seus primeiros sinais de crise com o preparo insuficiente dos professores (o curso normal antes tão prestigiado passa a ser mais um dos cursos profissionalizantes instituídos pela Lei n. 5692/71, que cria o ensino de primeiro e segundo graus), a criação das licenciaturas curtas incentivadas pela Reforma Universitária (1968) e a expansão desordenada da rede privada de cursos de formação de professores. Como consequência dessa nefasta política educacional, em grande medida forjada na época da ditadura civil-militar (1964-1985), constata-se a degradação física das instalações escolares – fruto da contenção no investimento público em educação -, a queda de salário, o decréscimo do padrão de qualidade do ensino, o choque entre os professores e os novos contingentes de alunos mais pobres incorporados pela escola pública, a fuga dos professores da sala de aula rumo a atividades administrativas e/ou burocráticas e a fragilidade dos sindicatos da categoria.

O processo de abertura e redemocratização da sociedade brasileira ocorrido no final da década de 1970 promoveu uma espécie de ambiguidade na carreira docente, pois, se por um lado favoreceu a eclosão de lutas pela profissionalização do magistério, não evitou que ocorresse um sentimento de proletarização pela perda de controle de seu processo de trabalho, em função da contenção de salários e ausência de políticas públicas comprometidas com a educação de qualidade. Como consequência, predominam hoje no sistema escolar a lógica da produtividade/eficácia, o apelo ao voluntarismo (Todos pela Educação, Amigos da Escola), a ampliação da cultura de avaliação, o aumento de responsabilidade dos professores que precisam responder a exigências que estão além de sua formação (participação na gestão da escola, planejamento, elaboração de projetos, discussão de currículo, e mais recentemente à produção de aulas remotas por meios que nem sempre domina). Tudo isso causa uma sensação de perda da identidade profissional, na medida em que essas mudanças resultam na precarização do trabalho docente, tanto do ponto de vista objetivo –  contratos temporários, arrocho salarial, falta de planos de cargos e salários, perda de garantias trabalhistas – quanto subjetivo, traduzido por  sentimentos de insegurança e desamparo (6).

Nesse Dia do Professor, lamentavelmente, não temos muito o que comemorar. As questões salariais e as relativas à defesa dos direitos trabalhistas ainda dependem de muitos embates.  Como a profissão é majoritariamente feminina – ao menos na educação infantil e primeiros anos do ensino fundamental- continua-se insistindo nessa representação sacerdotal, conveniente para enfraquecer as lutas por melhores condições de trabalho e remuneração.  Cabe a nós decidir se queremos continuar sendo representados como abnegados sacerdotes ou lutar para conquistar nosso espaço como profissionais da educação.

Iniciamos o artigo com um trecho da obra “O Ensino Público”, escrita por Antonio de Almeida e Oliveira (1843-1887) com informações detalhadas sobre o ensino público no Brasil do século XIX. Termino com Paulo Freire (1919-1997) que concebeu e aplicou a educação como instrumento de conscientização e libertação. Em sua visão, o analfabetismo não era/é uma chaga, um mal que assolava/assola o país, mas a expressão concreta de uma realidade social injusta. Interditado na época da ditadura civil-militar, tornou-se alvo de ataques por parte dos apoiadores do atual (des) governo, após ter sido reconhecido como o “patrono da educação brasileira.” Que conselhos Freire daria para aqueles/as que fizeram do magistério o seu ofício? Quais seriam os saberes necessários à prática educativa? Eis a resposta:

Ensinar exige rigor metodológico,

Exige pesquisa, curiosidade, bom senso e criticidade.

Exige respeito aos saberes do aluno, aceitação do novo,

Rejeição a qualquer forma de discriminação.

Exige convicção de que a mudança é possível,

Disponibilidade para o diálogo, para o afeto

E acima de tudo, exige humildade, tolerância

E muita luta em defesa dos direitos dos educadores (7)

 

Sigamos juntos, na esperança de que dias melhores virão…

 

Notas da Autora

(1) Antonio de Almeida OLIVEIRA. O ensino público. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 204 (Publicado originalmente em 1880).

(2) Phillipe ARIES. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981.

(3) Michel FOUCAULT. Vigiar e punir. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

(4) Eric HOBSBAWM. A era das revoluções (1789-1848). 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

(5) Luiz Antonio CUNHA e Moacyr de GÓES. O golpe na educação. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

(6) Marcelo Badaró de MATTOS. Novos e velhos sindicalismos: Rio de Janeiro (1955-1988). Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998.

(7) Paulo FREIRE. Pedagogia da Autonomia. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

 

 

 

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