O jornalismo compungido precisa rever suas origens violentas

Por Alceu Castilho 

Marcelo Canellas na reportagem

O jornalismo compungido precisa rever suas origens violentas.

Penso isso ao ver Marcelo Canellas, pela enésima vez, encerrar reportagem sobre barbáries (no caso, a fome) com alguma palavra supostamente poética.

Vejam, Canellas não se perfila entre aqueles repórteres indiferentes, ele busca temas sociais importantes. Mas ele está profundamente equivocado. Falta formação política. Falta muita coisa.

Ele precisa perceber que está sendo usado, que esse personagem condoído que ele projeta cumpre a função de procurar humanizar o Fantástico e a Globo, como se as elites brasileiras tão bem representadas pela emissora não tivessem cumprido um papel determinante na perpetuação das desigualdades.

E ele não é o personagem, pois não? E sim as pessoas que morreram de fome. (Os parentes não estão felizes em vê-lo, Marcelo. Fica a dica.) Em paralelo, aquelas que permitiram a fome e as desigualdades estruturais que originam essa barbárie.

Ele mesmo mencionou alguns nomes em um gráfico com a curva do mapa da fome: Temer, Bolsonaro. Mencionou muito de passagem. Ele não pisa no acelerador em relação aos responsáveis porque não combina com a musiquinha cândida da edição e porque seria necessário identificar — questionar, esmiuçar — políticas públicas dos governos Temer e Bolsonaro apoiadas pela Globo.

(Aproveito aqui para assinalar que considero a Globo a pior das emissoras privadas, excetuadas todas as outras. As outras são piores.)

Isso significa falar do golpe de 2016 e das políticas de destruição que levaram o nome de reformas (previdenciária, trabalhista), da celebração da informalidade como se emprego fosse, da sustentação de Paulo Guedes como Ministro da Economia Genocida, da velha economia voltada para os interesses de Lemann, Telles e Sicupira, os interesses do mercado farsante.

No momento em que Canellas pronuncia palavras compungidas é como se a família Marinho dissesse que lamenta muito tudo isso que aconteceu, como terá sido possível? Canellas está triste, a família Marinho perplexa, em que momento exato foi possível que essas 125 milhões de pessoas tenham ficado sem comer?

(Houve quem dissesse que a Marina errou nas contas há alguns dias. Marina não errou nas contas. O objetivo não é só combater a fome crônica de 33 milhões de pessoas. Mas a fome.)

Ora, isso é possível na medida em que nosso modelo agroexportador, de monoculturas e concentração de terras é apoiado explicitamente pela Globo nos intervalos comerciais dos programas onde os repórteres da emissora apresentam suas falas compungidas, onde a Maju e o Bonner engolem a seco quando apresentam uma indígena famélica que vai morrer, vai morrer — e que morreu.

Aí vão me perguntar: por que você está falando do Canellas, um rapaz tão bem intencionado, se tem gente muito pior que ele na imprensa televisiva?

Ora, estou falando dele porque esses que estão à direita do Canellas não têm salvação. A crítica a ele significa um desprezo absoluto por quem nem tente colocar esses temas em pauta.

A questão é que a abordagem compungida de repórteres como ele não somente é insuficiente para o tamanho do problema, como costuma ser nociva.

Porque desse jeito a gente não discute modelo agrícola, não questiona a desigualdade, não dá nome aos algozes — sistemas, não somente pessoas, sistemas políticos, hegemonias econômicas e midiáticas.

As pessoas que estão passando fome não precisam que o Canellas olhe para elas com comiseração, como se fosse um Enviado Especial da Civilização. E sim que ele puxe alguns dados e os contextualize (com a ajuda de quem entenda do tema), deixe a poesia de lado para emitir algumas exclamações e interrogações endereçadas àqueles

que comeram a aposentadoria e o salário e a terra e as oportunidades de emprego sério dos esfomeados.

 

Alceu Castilho é jornalista e diretor do site De Olho nos Ruralistas

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